Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Vera Iaconelli

Corpo de mulher e corpo de mãe

Ativistas pela amamentação prolongada consideram psicanalista inimigo velado

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Freud foi quem primeiro escancarou o prazer erótico do bebê ao mamar e ao ser cuidado, o que lhe valeu o título de cientista tarado. Esse erotismo necessário e estruturante para o bebê é uma das condições para que um ser humano adquira capacidade amorosa e capacidade de fazer laços afetivos.

O grande problema é que, embora sejam os pais e as mães a lhe ensinarem isso, caberá a eles também a tarefa menos simpática de mostrar que toda essa carga afetiva e erótica não poderá ser consumada em casa. A criança perde pai/mãe e ganha todos os homens/mulheres que vier a encontrar em situação de igualdade. Troca justa e vantajosa, tão necessária quanto penosa. É a versão simplificada do famoso complexo de Édipo, que os pais parecem ter muita dificuldade de sustentar em nossa época. Aprendemos a amar com os pais, mas não seremos seus amantes. O problema é que na prática pode ser difícil discernir nuances nas situações do dia a dia.

MurielleB - stock.adobe.com

Os ativistas pela amamentação prolongada costumam considerar os psicanalistas inimigos velados. Afinal, para a psicanálise o corpo da mãe precisa ser interditado ao bebê no momento oportuno, ou seja, o prolongamento indefinido do aleitamento materno, preconizado por algumas famílias, expõe a criança a um usufruto do corpo materno para além do recomendável. Tema espinhoso que se choca com o direito da mulher de dispor de seu corpo como quiser, inclusive se for dando o peito prolongadamente aos filhos.

Vale lembrar que, diferentemente das culturas nas quais o seio da mulher não tem nenhum apelo erótico para os adultos, o seio feminino na nossa cultura é alvo de verdadeiro culto. Haja vista o uso de sutiãs, as cirurgias para colocação de silicone, a valorização dada a eles pela moda e o frisson que dar de mamar em público causa. A criança também reconhecerá o seio com essa dupla vertente: fonte de alimento e órgão sexual. Não se trata de um cotovelo a ser chupado indefinidamente, o que já seria bem bizarro também. Trata-se de um órgão com participação efetiva no ato sexual entre adultos.

A coisa complica ainda mais quando pensamos na questão do corpo feminino em nossa cultura. Temos dificuldade em entender que a mulher, embora compartilhe de seu corpo para dar origem a outro ser, não pode estar à disposição desse outro indefinidamente. 

Aliás, o paradoxo da criação de filhos é que a criação só funciona se observarmos o tempo de cada coisa. Basta pensarmos em quantos banhos deliciosos demos em nossos bebês e que horror seria continuar a dá-los no adolescente. Da dependência absoluta do bebê à autonomia do adulto, o tempo das coisas é fundamental. Mais do que cronologia, que desrespeita a singularidade de cada filho, trata-se de reconhecer o sentido do que se oferta e do que interdita e ficar atento ao que está em jogo quando o anacronismo impera. Dispor do corpo da mulher indiscriminadamente a coloca em dois lugares paradoxais: de ser onipotente e insubstituível, sem o qual a criança pereceria, mas também de objeto à disposição da criança, que se dobra às suas vontades. 

Da onipotência à objetificação, o corpo feminino está em jogo nessas fantasias de possessão tão perigosas. Bebês e crianças, por sua vez, podem prolongar a amamentação para satisfazer à mãe, ou se recusar a lhe dar esse gostinho. 

Resumindo, cabe à mulher decidir sobre o aleitamento —e tudo mais que diga respeito ao seu corpo—, mas cabe ao psicanalista alertar para o que pode estar em jogo nessa escolha.

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