Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Vera Iaconelli

O encontro com o sexo

Não adianta tapar a sexualidade dos jovens com a peneira da ignorância

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A tragédia infantil “O despertar da primavera”, de Franz Wedekind (1891), começa com a mãe da jovem Wendla angustiada ao reconhecer que o corpo da filha não poderia mais ser coberto pelo vestido curto da infância, não havendo mais barra para encompridá-lo.

Bela imagem da angústia de pais e mães que assistem ao crescimento dos filhos atônitos, desejando retê-los no tempo.

Basta a porta entreaberta do quarto ou uma toalha que escorrega na saída do banho para nos depararmos com pelos, tamanhos e volumes que nos jogam na cara que há um homem/mulher dentro de casa, onde até então havia um bebê/criança.

Reconhecimento traumático para alguns pais e mães, que reatualizam suas próprias questões sobre o crescimento, o corpo e o sexo. O que ficou mal elaborado em nós, volta como assombração na nova fase dos filhos.

Os pais e a sexualidade dos filhos
Os pais e a sexualidade dos filhos - highwaystarz/stock.adobe.com

Em “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz (2019), concorrente brasileiro a candidato ao Oscar, vemos Guida —interpretação magistral de Julia Stockler— uma personagem inesquecível.

A cena de sedução entre Guida e o marinheiro grego é das mais delicadas e sensuais do cinema nacional, contrastando claramente com o sexo tragicômico do casal Antenor e Eurídice. 

Escorraçada pelo pai, ao vê-la grávida do estranho, Guida revela a sexualidade que não se aliena ao desejo do outro, que não cede, que escandaliza por não se enquadrar. O pai a joga na rua gestante e desamparada exatamente porque ela é sua filha, e não apesar disso.

Na peça “Stabat Mater”, em cartaz até 11/12, Janaína Leite dá um passo a mais e encena, ao lado da própria mãe, seu encontro com o enigma do sexo.

Auto ficção que vai ao limite, levada aos palcos com ousadia, revela que o susto no encontro com o sexo não se refere ao ato em si —banal e mecânico como a pornografia só faz comprovar—, mas ao reconhecimento da alteridade absoluta do desejo do outro.

Como cada um de nós goza é enigma que vai conosco para o túmulo junto com o “cine privé” de nossas fantasias eróticas mal dissimuladas.

É nesse ponto que os filhos nos escapam irremediavelmente: em seu desejo singular e intangível. É duro reconhecer que, de fato, nossos filhos nunca foram “nossos”.

Vale apelar para quem entre os responsáveis tiver mais sobriedade para lidar com jovens nessa fase e, de quebra, —mas longe deles— aproveitar o ensejo para rever questões pessoais que ficaram mal paradas.

O encontro com o sexo é perturbador e inevitável. Perturbador porque descobrimos que não somos mestres em nossa própria casa, em nosso próprio corpo.

Nesse sentido o esbarrão com a sexualidade é inevitavelmente traumático, ainda que possamos lidar com ele de jeitos melhores ou piores.

A peça de Wedekind denuncia uma das formas preocupantes e trágicas de lidarmos com essa situação. Wendla é ignorada em seus anseios, não tem suas questões escutadas, tampouco recebe uma palavra que dê contorno a sua experiência. 

A tragédia anunciada se desenha aí, quando se tenta tapar a sexualidade da jovem com a peneira da ignorância. Qualquer semelhança com a forma como o atual governo se propõe a tratar o tema não é coincidência —1890 nunca foi tão atual. 

Escutar atentamente, evitar a exposição a situações desnecessárias e perigosas —como gravidezes, violências e doenças—, oferecer palavras de orientação e apoio são os recursos que os pais têm, e os professores também, numa fase em que nem todo o tecido do mundo é capaz de acobertar a prontidão dos corpos na realização do desejo.

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