Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Home office, homeschooling, homeless

O que fazemos com o que nos cabe?

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Um vídeo produzido por Pablo Yafe, coordenador pedagógico de uma escola secundária de Buenos Aires, começou a circular falando sobre o lugar dos estudantes e da escola nesse momento.

Confesso que não gosto de vídeos pandêmicos, por serem piegas e tentarem nos emocionar quando já estamos por um fio, mas esse foge à regra ao inserir uma questão.

A pergunta que Yafe nos faz —no formato clipe irresistível— é: “¿qué van a hacer con lo que les toca?” (o que vamos fazer com o que nos concerne?).

O verbo tocar em espanhol se refere ao que nos concerne, nos acontece ou a nossa vez, mas também remete ao toque, tão restrito nesse momento.

O trabalho em home office é a soma do escritório com as tarefas do lar e a responsabilidade com as crianças
O trabalho em home office é a soma do escritório com as tarefas do lar e a responsabilidade com as crianças - JenkoAtaman/stock.adobe.com

Diante de grandes incertezas, busca-se adivinhar o futuro desesperadamente, o que produz ansiedade generalizada.

Yafe propõe um outro exercício, que é o de fazer seus alunos refletirem sobre como responder às próximas gerações “o que fizeram durante aquele estranho 2020”.

Não é fácil passar de “millennial” à “coronial” em 15 dias, mas é grande a oportunidade de revermos posições. E, diferentemente da rabugice geral, acredito que temos nas gerações mais jovens um grande potencial de transformação.”

Lembremos que infância e juventude existem para quem, no mínimo, não precisa trabalhar e que no Brasil há 2,4 milhões de crianças entre 5 e 17 anos trabalhando em condições aviltantes.

Dessa forma, ao nos referirmos aos jovens estudando em casa, sabemos que se trata de uma parcela da sociedade, mas não devemos esquecer que serão esses os formadores de opinião, os que terão acesso às posições de poder em breve.

Se usarem seu tempo de quarentena para manter a escola viva —apesar do ensino a distância e não por causa dele— já terão feito muito.

A escola, enquanto espaço de reflexão, crítica e conhecimento —diferentemente do que apregoa esse governo obscurantista, antifreiriano e anticientífico— é uma das condições para que escapemos
do buraco que a “hole family” nos aponta diuturnamente.

Quanto aos adultos que estão trabalhando de casa, esses estão descobrindo o lado insano de conciliar ambiente corporativo, produtividade e tarefas domésticas com as aulas online das crianças.

Veem-se confrontados com o ideal contemporâneo de produtividade neoliberal, que se baseia em abrirmos mão das relações parentais, familiares, pessoais, do cuidado de si e da casa em nome da produtividade, da sobrevivência —ainda que precária— e do acúmulo de bens de consumo descartáveis.

Quando os serviços terceirizados que sustentam o dia a dia insano desabam, o sujeito se dá conta de que não frequentava os filhos, a família e a sua própria casa há um bom tempo.

Lembremos também a outra imensa parte da nossa população que já está sem trabalho, aguardando o fim do jejum eletivo de Bolsonaro para receber o dinheiro que lhes conforte diante de seu jejum compulsório.

Falar sobre qualquer assunto no Brasil —hoje, mais do que nunca— exige que consideremos nossa realidade de diferenças abismais.

Essas diferenças não justificam que pensemos que o sofrimento é privilégio da pobreza e que as condições financeiras retiram a legitimidade da dor de cada um.

É justamente pela crença de que os bens teriam o poder de curar o mal-estar e o sofrimento que somos compelidos na direção do consumo desenfreado.

“O que fizemos durante aquele estranho 2020?”

Cada um responderá por si, mas se não encontramos saídas coletivas, tampouco teremos boas opções individuais.

O aeroporto já não é mais uma opção.

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