Para compensar o horror das centenas de milhares de mortes, da perda de projetos, empregos, salários e do tempo suspenso pelo pesadelo da quarentena, queremos crer que a pandemia nos trará recompensas.
Ao avistar o Himalaia, que estava encoberto pela poluição há décadas, os indianos —e o resto do mundo— abraçariam sem piscar a pauta ecológica, salvando as próximas gerações do aquecimento global, da falta de água e do ar irrespirável.
Por terem precisado do serviço público para sobreviver, as elites do mundo escolheriam governos que visassem o bem comum, recusando o modelo neoliberal de precarização do trabalho e do estado mínimo.
Ao invés de ser sorrateiramente privatizado e sucateado como vinha sendo —inclusive pelo ministro Mandetta— o SUS se tornaria o modelo global de saúde pública.
Profissionais do mundo inteiro repensariam sua rotina de trabalho e o fato de passarem a vida longe da família e de casa.
O consumismo desenfreado cederia ao reconhecimento de que vivemos bem melhor com muito menos.
Os domicílios seriam geridos por seus moradores e o serviço doméstico seria remunerado. O fartote de virtualidade levaria todos a diminuírem suas exposições às telas, o sofrimento mudaria nosso estilo de vida predador e autodestrutivo e passaríamos a valorizar as coisas simples.
Pais, mães e filhos finalmente dialogariam; casamentos ruins dariam lugar a divórcios bem-vindos e novas relações teriam vez, com divisão equânime de tarefas.
É claro que tamanha ingenuidade não serve para outra coisa que não o escapismo. Depois de todas as desgraças que o mundo já enfrentou e continua a enfrentar —cataclismos naturais, sociais, políticos e econômicos— ficou provado que sofrimento nunca foi sinônimo de solidariedade e amadurecimento. Muito frequentemente o resultado é o recrudescimento do pior em nós e na sociedade.
Mudanças pontuais podem ser observadas, mas não são maciças e têm pouco poder de persuasão diante dos interesses do mercado. Não podemos esperar que o vírus faça nossa lição de casa.
Muito embora as saídas coletivas sejam difíceis, não nos resta saída senão seguir lutando. A ética nos obriga a continuar enxugando esse gelo infinitamente.
Existem duas apostas para que os sujeitos —e, a partir daí, um povo— mudem sua rota de destruição.
Uma, na qual o sujeito se conscientiza de que não há diferença substancial entre ele e o outro e que, portanto, cada vida —como a sua própria e a dos demais— merece ser cuidada com toda a dignidade.
Disso se trata o final de uma análise: reconhecer-se único e falível entre outros igualmente únicos e falíveis, merecedores da existência, da liberdade e da responsabilização por suas escolhas.
A outra aposta é pragmática e surge da constatação de que não há como vivermos bem —em termos de segurança, economia e liberdade pessoal— cercados por uma população de miseráveis.
Se não for pelo caminho do reconhecimento da alteridade, que a mudança seja feita a partir do cálculo matemático de que para sobrevivermos em um país digno de se viver dependemos uns dos outros.
É claro que essas apostas só servem para aqueles que não fizeram um pacto com a morte, fruto do ódio de si e do ódio ao outro.
Nosso “Estado suicidário”, como Vladimir Safatle nomeou tão bem, cujo símbolo sempre foi a arma empunhada e a tortura, é exemplo acabado desse pacto sinistro.
Se alguma redenção puder advir dessa pandemia, será decorrente da ética ou do pragmatismo de sobrevivência. O vírus só traz doença e morte.
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