Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Negação, negacionismo e má-fé

Normalidade não é coisa de humanos, mas há casos e casos

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Lembra aquela sua amiga que te ligou para falar que ia se separar do marido monstro, te deixando com a certeza de que, finalmente, ela ia se livrar daquele pequi roído? Você se sentiu aliviada(o) pensando como foi ótimo ter confessado tudo que você pensava dele há anos. Pois é… não só ela nunca se separou dele, como nunca mais atendeu seus telefonemas.

Entre belos discursos —“vou me separar”— e as fantasias inconscientes —“amar é sofrer”, por exemplo—, cada um de nós tem que lidar com sua divisão interna. O mecanismo de negação nos protege de realidades desagradáveis e permite que sigamos no dia a dia sustentando desejos conflituosos dentro de nós.

Uma das genialidades de Freud foi apontada por Philippe van Haute e Tomas Geyskens em “Psicanálise Sem Édipo: Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan” (Autêntica, 2016), na qual os autores recuperam a via que denominaram de “patoanalítica” da psicanálise. Isso significa dizer que eles resgatam a ideia freudiana de que normalidade não é coisa do mundo humano e o que chamamos de loucura, neurose e perversão é mais da ordem do grau do que da diferença absoluta. Caetano já teorizava, “de perto…”.

Agora imagina que a amiga, que volta deliberadamente para os braços do boy lixo e que sempre foi criticada por fazer isso, encontra um grupo na igreja que acredita que a mulher tem que se submeter ao marido, comungando com sua fantasia inconsciente. E que fazendo parte desse grupo ela se sinta importante pela primeira vez e ainda se veja representada na figura da primeira-dama e de mulheres em cargos importantes do governo. Junte-se a isso que seu ódio ao marido —e a si mesma— possa ser desviado para fora, sendo projetado em feministas, esquerdistas, comunistas…

Negacionismo foi um termo criado para falar de negações de eventos específicos como Holocausto ou certezas científicas. Para sustentar tamanha negação e ter efeitos sociais importantes, os sujeitos precisam se separar de quem contradiz suas interpretações da realidade e se unir a quem pensa igual. Aí entra um ingrediente desconhecido de Freud: as redes sociais, nas quais negacionistas encontram milhares de pessoas que pensam como eles. Não se trata mais de se dirigir pessoalmente à Hofbräuhaus em Munique para ouvir um tal de Hitler discursar contra judeus e homossexuais. Basta um clique para você encontrar seus pares e confirmar que a Terra é plana, óbvio.

Além disso, os laços de reconhecimento mútuo que pessoas usualmente preteridas pela sociedade fazem nesses grupos costumam ser carregados de afetos e de sentido de reconhecimento e pertencimento. O amor que une as bolhas se sustenta na condição de se destilar ódio aos outros. Quando essas bolhas encontram um líder que as represente de forma pública, temos a tempestade perfeita. O amor ao líder e o ódio projetado no inimigo comum permitem que negacionistas briguem menos entre si, criando a patota dos cidadãos de bem.

Já na má-fé o sujeito sabe muito bem qual é a realidade dos fatos, mas explora a miséria e o negacionismo de outros. Entre os exemplos que pululam, temos o dado pelo “pastor” Edir Macedo.

Enquanto prega que seus fiéis não precisam se vacinar —pois o vírus só contaminaria homens de pouca fé— corre para tomar a vacina recém-liberada nos EUA, onde mora.

Reconhecer a importância da vacina e, deliberadamente, desmenti-lo em público para obter vantagens —e, ato contínuo, tomá-la— é traço inequívoco de psicopatia.

Dito isso, que fique claro que Bolsonaro é um negacionista de segunda, mas genocida de primeira.

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