Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Vera Iaconelli

Quando o homem chora

Meninos são criados com pouco repertório para lidar com os afetos

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Sempre me chamou a atenção o tipo de pressão à qual estão submetidos meninos, desde muito pequenos. Para eles, o constrangimento diante dos limites impostos pelo corpo infantil costuma ser compensado por espadas, pistolas, lutas marciais e infindáveis jogos nos quais a competição é o centro da brincadeira. Todas as crianças competem, mas, entre meninos, a insistência em provar algo o tempo todo é notória.

Sobre os ombros dos meninos pesam grandes expectativas de liderança, realizações e capacidade de bancar uma família. Diante de situações carregadas de afetos eles são orientados a seguir brincando, enquanto as meninas são consoladas e incentivadas a narrar o que aconteceu. Aqui, a diferença de repertório oferecido a cada gênero é bem clara, restando aos meninos partir para a ação diante do sofrimento e situações emocionais complexas e às meninas nomear os afetos e refletir.

Criança de camiseta azul tapando o rosto com as mãos
Criança triste tapando o rosto com as mãos - Lucas Metz/Unsplash

Os tempos mudaram, mas não para a maioria da população masculina, que continua sendo educada para desempenhar o papel de quem faz, não de quem medita sobre o que faz. Essas expectativas recaem sobre eles assim como a pressão com a aparência recai sobre elas. Mesmo quando são criados por famílias menos sexistas, logo percebem que no jogo social é o estereótipo que impera, o que levará cada um a responder a essas demandas de diferentes formas.

Não tendo aprendido a lidar com os próprios afetos —afinal, trata-se de um longo aprendizado negado aos meninos— são acusados de suportarem mal o choro e o sofrimento alheio. A queixa —deles e delas— é que homens, não estando habituados a um vasto repertório emocional, respondem com perplexidade, irritação ou violência quando são chamados a solucionar conflitos. Óbvio que não cabem generalizações aqui.

O respeito ao choro —expressão humana de múltiplos significados— é uma das marcas da nossa capacidade de reconhecer o outro como merecedor de consideração tanto quanto nós, ou seja, marca da nossa capacidade empática.

Mas eis que o presidente, que se gaba de sua masculinidade avessa às fraquejadas femininas, declarou chorar escondido da família, no banheiro, diante do peso de sua função de governar. Seria uma fala exemplar de um homem no cargo mais importante de uma nação assumindo que o peso da responsabilidade de sua função pode afetá-lo. Nada mais digno do que reconhecer que estar à frente de um cargo que afeta a vida de mais de 210 milhões de pessoas —e, indiretamente, afeta os rumos do planeta— seja deveras pesado.

Mas, obviamente, não se trata disso. Depois de quase 30 anos como deputado sem nenhuma expressividade, Bolsonaro e sua família estão sob a lupa da Justiça brasileira e internacional. Seu nome tornou-se irremediavelmente associado a centenas de milhares de mortes, à suspeita de peculato e corrupção, ao desmatamento de terras indígenas, à intolerância religiosa, sexual e de gênero e ao aumento da fome dos brasileiros.

Suas lágrimas certamente não são pelas duas crianças de cinco e sete anos tragadas pelas dragas do garimpo ilegal no rio Uraricuera, nem pelas tragédias que se avolumam sob sua gestão.

Não são lágrimas falsas, mas são lágrimas de quem teme por si mesmo e não pelos outros. Por quem chora, Bolsonaro, senão pela família e pelo reconhecimento de que em algum momento sua responsabilização vai chegar?

Para saber do valor de um sujeito, de qualquer gênero, basta observar como ele assume a responsabilidade por seus atos. Pode chorar à vontade, esse direito é inalienável, mas vai ter que pagar.

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