Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente machismo

Para ser mulher tem que ter útero?

Não é na anatomofisiologia que se encontra a questão da mulher e as razões de sua opressão

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Parece que o movimento feminista tem que viver, de tempos em tempos, alguns chacoalhões internos para estar à altura de seus anseios por justiça. Foi assim quando as mulheres negras acusaram as sufragistas de defenderem uma pauta branca e classista, ignorando que quem já foi escravizado não tem as mesmas prioridades de quem escravizou.

Se as mulheres brancas denunciam a maternidade compulsória, para as negras e pobres é o direito à maternidade que está em jogo, uma vez que ele é desqualificado por um Estado que lhes destitui o poder familiar sistematicamente.

A assistente pessoal Nicole Rodrigues, 35. Foto tirada em janeiro de 2021
A assistente pessoal Nicole Rodrigues, 35. Foto tirada em janeiro de 2021 - Karime Xavier/Folhapress

Vale lembrar que as centenárias anarco-feministas já lutavam contra a obrigatoriedade da maternidade, do casamento, da heterossexualidade, enquanto o feminismo maternalista reinava.

Outra questão que modifica a extensão do movimento é a disputa entre um feminismo liberal, que comemora a conquista de algumas ao estilo meritocrático, no qual as "melhores vencem", e um feminismo de esquerda, que leva em consideração as diferenças sociais.

A aspiração por incluir todas obriga a considerar o abismo entre nós e pleitear a equanimidade, sem a qual não há justiça.

A partir do movimento LGBTQIA +, o chacoalhão vem pelo lado das mulheres trans. Elas nos levaram a questionar se pessoas que não nasceram com útero e se reconhecem como mulheres cabem na pauta feminista.

A resposta nos impele a repetir o sempre atual mantra beauvoiriano: "não se nasce mulher, torna-se". Frase fundamental para lembrar que não é na anatomofisiologia que se encontra a questão da mulher e as razões de sua opressão.

Usar o útero para restringir o sentido do feminismo é ignorar do que é feita a mentalidade que nos oprime. Como aprendemos com Gayle Rubin, já nos anos 1970, as relações sociais determinam a interpretação dos dados da biologia, e não o contrário. A opressão às mulheres é contemporânea do rígido controle social da sexualidade, o que deve nos deixar atentas a toda forma de ingerência no campo do gênero e da orientação sexual. A categoria mulher tem servido para justificar a exploração e o poder de uns sobre os outros, e qualquer um que integre ou orbite o universo feminino recebe o chumbo grosso da misoginia, tenha útero ou não. "La donna é mobile, qual piuma al vento", já dizia Verdi, ao retratar aquelas em quem não se pode confiar. A regra é subestimá-las, mas, em caso de dúvida, é melhor jogá-las na fogueira.

Esse critério já seria suficiente para que repensássemos o guarda-chuva do feminismo. A história se repete, lembremos de Sojourner Truth, mulher negra e ex-escravizada, perguntando em 1851: "E eu não sou uma mulher?".

A agenda de cada grupo tem especificidades, mas o feminismo é um movimento social e político que denuncia e luta contra a exploração sexual e social de todas as mulheres. É também uma área de pesquisa com mais de um século de discussões que buscam evitar interpretações simplistas. A intuição confunde o significante mulher - categoria de sujeitos oprimidos por seu gênero e por sua sexualidade - com pessoas nascidas com útero.

Tampouco se pode confundir pessoas nascidas com útero com feministas ou pessoas dentro do espectro LGBTQIA + com militantes pela causa progressista.

Em sua história, o movimento feminista foi capaz de reconhecer que não há liberação das mulheres sem pensarmos nas questões raciais, sociais e de gênero. Nessa altura do campeonato, se fosse só uma questão anatômica teríamos muito pouco do que nos orgulhar nessa trajetória.

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