Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente

Está chegando a hora de dizer tchau

Ou se deixa levar pela experiência de amar e se despedir ou não se vive a parentalidade

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Aos dois anos, minha filha costumava assistir "Teletubbies". Tudo ia bem até o momento no qual se ouvia: "É hora de dar tchau". A partir daí ela repetia o ritual de gritar "não, não" e correr para atrás da televisão, tentando descobrir para onde eles tinham ido. Em seguida olhava para mim triste e perplexa, com as mãozinhas voltadas para o alto na altura dos ombros, como quem segura duas bandejas invisíveis. Como podiam deixá-la assim, no auge da brincadeira, com um simples tchau?

Passados 23 anos, olhando a moça que sairá de casa este ano, me pergunto: para onde foi a menininha que fazia a pose egípcia diante da despedida de Tinky Winky, Dipsy, Laa-laa e Po?

Minha enteada teve bebê, me alçando à categoria de vodrasta, escancarando mais uma vez a obviedade do ciclo da vida, para o qual nunca se está preparado. Aliás, o que mais me aproxima da psicanálise é a curiosidade em descobrir como as experiências mais previsíveis nos afetam singularmente. Ou seja, como nunca estamos preparados para os acontecimentos fundamentais da vida: o nascimento, o envelhecimento e a morte. Descoberta que só pode ser feita a posteriori, me interessa o que fazemos com isso que não temos como saber de antemão.

Po, Laa-Laa, Dipsy e Tinky Winky, os quatro bonecos da série infantil "Teletubbies"
Po, Laa-Laa, Dipsy e Tinky Winky, os quatro bonecos da série infantil "Teletubbies" - Divulgação

Do fato mais banal da existência humana —que as gerações se sucedem— surgiu o meu inesperado reconhecimento de que passei de protagonista a coadjuvante. Agora assisto da plateia: quem esteve no lugar de cuidado assumiu o lugar de cuidador e responsável por outra vida. Passei a ser o extintor de incêndio a ser acionado apenas em casos extremos, função mais simbólica do que real. Hoje, servimos para lembrá-los que, se eles sobreviveram à nossa imensa imaturidade, essa é a prova de que os filhos deles também sobreviverão.

Aos quase 95 anos, minha mãe deu entrada no pronto-socorro em razão do que veio a se descobrir ter sido uma discreta isquemia. Conversando com ela sobre o momento em que o braço falhou e a boca ficou torta, ela conta do medo de ficar incapacitada de falar ou de se locomover. Ela encara o prenúncio do fim como uma contrariedade, algo contra o qual ela luta a qualquer preço. Seu desejo inquebrável de viver continua a me surpreender.

A filha que sai de casa, o neto que chega, a mãe que encena seu fim. Talvez a pergunta não seja onde está a menininha que sofria a cada despedida frente a seu programa querido, mas onde eu estou, passado quase um quarto de século?

Meu genro carregando o filho de menos de 60 cm diz que já sente saudade dele. Saudades do bebê que ele era ao nascer —há pouco mais de um mês— e que agora já está um pouco maior. Só posso torcer para que continue a reconhecer, a cada passo junto ao filho, que os ganhos vêm na exata medida das perdas, não havendo o que acumular. Ou se deixa levar pela experiência de amar e se despedir ou não se vive a parentalidade.

Os pais do bebê recém-nascido deram lugar aos pais de crianças, aos de adolescentes, agora aos de jovens adultos. Num piscar de olhos, com sorte, seremos pais/mães e padrastos/madrastas de velhos.

Não tem ninguém atrás da televisão, filha, chegou a hora de dizer tchau.

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