Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Descrição de chapéu Mente

Tragédia em Aracruz não é caso isolado

Massacre em escola segue a cartilha norte-americana e deve ser enfrentado

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O pai do atirador de Aracruz (ES), tenente e psicanalista, quando questionado sobre a postagem de "Minha Luta", de Adolf Hitler, em sua rede social, respondeu: "Li e odiei". Não duvido, mas resta saber se odiou o livro ou aquilo que o livro leva a odiar: o semelhante.

Se for psicanalista, não negará a ambiguidade presente na linguagem, matéria-prima do nosso trabalho.

Não há nada que desabone um psicanalista ser policial ou exercer qualquer outra profissão digna. O que torna impensável alguém se autodenominar psicanalista é o não reconhecimento do inconsciente, de que somos todos sujeitos constituídos pela linguagem, independentemente de fenótipo, religião, classe social, idade… E que somos inteiramente responsáveis pelos nossos atos, conscientes ou não.

As filiações institucionais, as décadas de estudo teórico, de análise e de supervisão não significarão nada sem uma posição ética diante de si e do outro.

Policial em frente à unidade onde era mantido o adolescente apreendido sob suspeita de promover ataques a duas escolas em Aracruz, no Espírito Santo - Antonio Moreira/AFP

Édipo não furou os próprios olhos à toa. Seus crimes —matar o pai em legítima defesa e desposar a mãe sem o saber— não eram de seu conhecimento prévio e, sob as leis que se apresentam nos códigos penais, talvez nunca fosse condenado. Mas a tragédia está aí para dizer que devemos assumir as consequências de nossos atos, mesmo que inconscientes. Daí a autopunição.

Os crimes em escolas, que se tornaram uma tragédia corriqueira na vida de norte-americanos, começam a espocar aqui seguindo a cartilha de lá. Assistimos à importação do discurso no qual se baseiam. Eles são frutos de uma combinação de fatos que o Brasil passou a promover com a família Bolsonaro. A adoração pelas armas —lambidas e alisadas— vem pôr fim a qualquer aposta no diálogo.

A arte de administrar conflitos —dia a dia da tarefa escolar— dá lugar à eliminação sumária do outro. O "cidadão do bem" não quer eliminar o ladrão ou o estuprador, mas o contraditório. Intimidar pessoas no espaço público —seja Gilberto Gil, Ciro Gomes ou Marina Silva— faz parte da licenciosidade da violência, que perdeu sua interdição.

As células supremacistas brancas aliciam jovens frustrados com a vida —sempre tão distante do gozo vendido pelas imagens virtuais— e fazem deles bombas-relógio, prontas para explodir em qualquer escola na qual circulam nossos filhos.

Detalhe não menos assustador: o jornal Estadão estampa a notícia com uma mão negra segurando uma arma. O jovem é branco.

Destaco a fala da mãe de Selena Sagrillo Zuccolotto, criança de 12 anos morta covardemente pelo jovem com duas suásticas sobre o uniforme militar. Com uma dor que nos é impossível compreender, ela diz que perdeu a filha para o ódio.

Nenhum diagnóstico poderia ser mais exato. Nem para a loucura, nem para um acidente, nem para a irresponsabilidade de um adolescente que não sabe o que faz, essa mãe e essa comunidade perderam pessoas inocentes e amadas para um discurso que ignora o receptor.

Ódio a um outro fictício, colocado no lugar de responsável por todos os infortúnios de quem odeia. Desculpa para os fracassos, para as limitações, para o imponderável. Se o outro não me ama, não me deixa gozar, não me entende, não resolve as agruras de viver, só me resta matá-lo.

A fala de políticos, a abordagem incontinente de pessoas no espaço público, os atos terroristas dos golpistas fomentam o mesmo caldo de cultura no qual é possível que um jovem entre numa escola para matar quem estiver pela frente.

Para que possamos voltar às nossas vidas, elaborar o luto, sem jamais esquecer, há que apostar na Justiça. Não a justiça de Édipo, cuja ética está anos-luz dessa corja. Mas aquela, tão imperfeita quanto necessária, da qual dependemos para seguir como sociedade.

É isso ou deixar nossas crianças na porta da escola sem saber se as encontraremos na volta.

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