Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Mulher branca no Brasil

Ferida narcísica não é ferida de bala

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Como nos ensinou Freud, em minha livre interpretação: o que o coração não sente os olhos não veem. Penso nisso quando me detenho nos desafios do letramento racial. Sem colocar o afeto na conta da conscientização sobre o racismo, temos pouco a avançar.

Se é duro pensar no que ainda falta para que todas as pessoas sejam tratadas com justiça, serve de inspiração observar as conquistas em anos recentes. Corpos negros orgulhosos de suas características, novelas e propagandas protagonizadas por negros, os bancos das faculdades sendo ocupados por eles, a pauta racial onipresente em qualquer domínio do conhecimento, o resgate de autores e histórias negras, muitos são exemplos que eram impensáveis até pouco tempo. A violência alarmante é contínua, mas a situação não é a mesma de uma década atrás.

Frase "O futuro é uma mulher preta" escrita no asfalto da avenida 9 de Julho, entre a alameda Lorena e a rua Estados Unidos, na zona oeste de São Paulo
Frase escrita no asfalto da avenida 9 de Julho, entre a alameda Lorena e a rua Estados Unidos, na zona oeste de São Paulo - Gabriel Cabral - 27.nov.20/Folhapress

Chão comum para qualquer ação antirracista, a educação que informa sobre o racismo estrutural tem como limite o narcisismo de seu público-alvo. E se ignorarmos a questão afetiva, seguiremos reproduzindo o pior. Não existe cartilha de caminho suave, o letramento que interessa está mais para chá de boldo: amargo e curativo.

O termo narcisismo, que ganhou no senso comum a pecha de egoísmo, é, para a psicanálise, a condição da constituição subjetiva. Dói no ouvido quando um conceito que nos é tão caro é martelado como adjetivo vulgar e mal aplicado. O narcisismo, palavra importada do mito de Narciso, que dispensa apresentações, refere-se ao processo fascinante a partir do qual nos reconhecemos como unidade separada dos cuidadores. Dá-se com o bebê até aproximadamente um ano e meio de idade e culmina com a constituição do Eu. Sem ele, mal poderíamos falar em nome próprio. Lacan é o autor que tem as melhores sacadas sobre essa instância que se forma sintomaticamente para nos defender do outro e daquilo que preferimos desconhecer em nós mesmos. Daí que o Eu é complexo em sua missão de nos vender a melhor imagem de nós mesmos, poupando ferir nosso frágil narcisismo. O letramento racial, assim como o reconhecimento do machismo, é o sal na ferida narcísica.

Sendo uma mulher branca, me encontro na dupla face entre ser oprimida pelo meu gênero, enquanto oprimo pela minha cor. Não preciso fazer algo especial para oprimir/ser oprimida, pois meu corpo já é o passaporte que determina onde tenho e onde não tenho poder. Na presença de outros corpos, a hierarquia se coloca imediatamente, com ou sem meu consentimento. Serei seguida como suspeita em uma loja cara, serei importunada ao entrar sozinha em um bar à noite? Uma mulher pode acusar o "mansplaining" de um homem, mas e se ele for um homem negro? E se esse homem negro for rico e essa mulher branca for pobre? O letramento nos coloca diante de dilemas éticos imprescindíveis. Em geral, eles só ficam claros a posteriori, nos levando a perceber que só faremos melhor —se essa for a intenção— quanto mais nos embrenhamos na questão interseccional e reconhecermos seus furos.

Escolas, empresas, instituições em geral têm se mobilizado em busca de informação sobre racismo, classismo, misoginia e transfobia por força das leis e das pressões sociais. Passada a transmissão de conhecimento inicial e incontornável, começam a se dar conta de que falta alguma coisa. Os erros se sucedem e as violências se repetem perpetrados por pessoas bem-intencionadas que conhecem a cartilha antirracista de cor.

A questão é que a luta antirracista —e às demais formas de opressão— não vai sem o gosto amargo de vermos nosso narcisismo ferido. Não vai sem constrangimento, sem o sentimento de culpa. Caso contrário, estamos diante de uma racionalização linda e inócua como alface americana. Ela não vai também sem enfrentarmos a paranoia de achar equivocadamente que se trata de trocar opressor e oprimido de lugar.

O processo de letramento e conscientização é um processo sofrido, mas infinitamente menos duro do que ser o alvo da violência. Ferida narcísica não é ferida de bala.

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