Na coluna da semana passada, me vi tendo que falar novamente sobre a ideologia nefasta que nos mortificou durante quatro anos. A manifestação pública do dia 25 trouxe de volta a carga afetiva e o mal-estar da experiência traumática, encoberta pelas demandas do dia a dia.
Nessas ocasiões, a adrenalina sobe e a escrita jorra, embalada pela indignação. Escreve-se com as vísceras, como se diz. O texto chega quente e os afetos que ele recolhe do leitor vão do agradecimento, da catarse ao mais puro ódio. Ao final, recolhem-se elogios, críticas válidas, críticas levianas, destempero e obscenidades. A comoção decorre do tema sensível e da forma intensa de abordá-lo. Aumentam as chances do texto viralizar —medida atual de sucesso, independente da qualidade do texto e do cancelamento do autor. Afinal, a gloriosa ressurreição dos cancelados tornou-se banal.
Mas existem os outros dias, aqueles nos quais o sangue circula pelo corpo todo, não apenas pelo olho. Neles, vive-se "a trégua", como tão lindamente escreveu Mario Benedetti ("A Trégua", 1960). A fresta pela qual a vida é vivida como bem maior de todos —apenas porque respiramos, sentimos o sol na pele, rimos ou trepamos— não dá tanto ibope.
É o "tempo da delicadeza", como dizem Cristóvão Bastos e Chico Buarque, pois não trata das grandes paixões da existência, que podem ser tão traumáticas como qualquer dor. São os momentos preciosos no meio do caos, nos quais a intimidade, a paz e a introspecção imperam. Momentos ignorados em nossa cultura do excesso e da velocidade, porque eles não arregimentam hordas enfurecidas.
Isso é a incitação da internet, que as big techs, os políticos e os empresários se recusam a tolher. Buscam, ao contrário, se certificar de que os afetos estejam a serviço da organização de tropas que se alinham diante de uma paixão comum e avassaladora, como Vladimir Safatle explorou em "O Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo" (2016).
Lacan descreve as três paixões humanas como sendo o amor, o ódio e a ignorância. O amor, enquanto paixão, coloca algo ou alguém numa posição ideal, a qual faz-se de tudo para estar à altura, uma vez que nos sentimos inferiorizados diante do objeto ideal. O ódio compartilhado faz a grande cola dos grupos, pois desloca para a figura do desafeto comum toda a virulência. Esse jogo permite manter a ilusão de que o grupo é coeso e feliz. Basta a derrocada do elemento comum —amado ou odiado— para que os irmãozinhos comecem a se matar pelo espólio afetivo. Não queremos saber nada sobre os fundamentos das nossas paixões amorosas nem das odiosas. Daí a paixão pela ignorância nos manter aprisionados nas duas anteriores.
Amor, ódio e ignorância fazem parte dos fundamentos de todas as relações humanas, mas podem ser vividos de formas muito distintas, mais ou menos destrutivas.
A resposta mais recorrente daqueles que discordam de opiniões progressistas é reveladora da manipulação dos afetos e do imperativo de nada querer saber sobre si mesmo. Se for mulher ouvirá, infalivelmente, o argumento —que vem direto dos bancos da quinta série— de que ela é mal amada e/ou "mal comida". Além do flagrante tolo de misoginia —por ser um comentário reservado unicamente a elas—, está colocado que, por nos faltar paixão, nossas opiniões seriam amargas e ressentidas. O paradoxo é que esse argumento costuma vir como resposta a nossas afirmações mais apaixonadas, aquelas que por vezes nos escapam à revelia do desejo.
O amor, a intimidade e o sexo, para além da manipulação dos cardumes midiáticos, se dão nas tréguas. Ali, onde o prazer não se funda em dominar e convencer o outro é que a vida tem chance.
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