Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Todas Mente

A inveja do pênis e os homens

O que 'Priscilla', 'Educação' e 'Jogo Justo' têm em comum

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Freud foi insistente ao falar do terror da castração que o menino experimenta ao descobrir que a mãe não tem pênis, ao partir da premissa de que somos todos iguais. Horrorizado por constatar que nela falta o pedaço de carne que nele sobra, permanecia a questão de saber o que de tão terrível a mulher teria feito para perder "the precious".

Evitando correr o mesmo risco, o menino ficaria atento, desistiria de rivalizar diretamente com o pai pela posse da mãe e reconheceria que não se pode ter tudo na vida. Já a menina, descobrindo que o menino tem o que ela e a mãe não têm, viveria um ressentimento devastador. Que mãe é essa que não lhe deu o que qualquer moleque nasce tendo? Daí a necessidade de se afastar da traidora e seduzir o pai, esse, sim, detentor todo-poderoso daquilo.

A cena edípica pode ser interpretada da forma mais tosca, como acima, até a mais sofisticada. O que subjaz a esse enredo forçado é nossa incessante busca por responder quem somos e em quem ou no que nos fiamos. Duas perguntas cujas respostas nossa eterna angústia dá a dica de que não estão disponíveis.

Pênis escupido em David, célebre obra de Michelangelo - Adobe Stock

A primeira é porque não há consistência ou estabilidade nisso que chamamos de nós mesmos e a segunda porque não há fiador do fiador. Daí que, acreditar que alguém pode tudo, tentar mantê-lo nesse pedestal e se apequenar para caber em seu colo é um truque fracassado que tentamos fazer sempre que possível.

Em "Priscilla" (2023), filme de Sofia Coppola, vemos uma menina de 15 anos na década de 1960 sendo tragada pela imagem irresistível do maior cantor de sua época. Ninguém está interessado em ver que Elvis não passa de um meninão milionário, cercado de puxa sacos sob o cabresto do Coronel —até lembra um famoso jogador de futebol. Nem os zelosos pais resistem ao charme de Elvis e a entregam de bandeja para o boy lixo. O passar dos anos e o nascimento da filha terão um efeito libertador sobre ela.

Em "Educação" (2009), filme de Lone Scherfig, temos uma jovem de 16 anos, também nos anos 1960, com pais que se encantam com o namorado mais velho e sofisticado. Ela vai se desinteressando pelos estudos, para desgosto da professora moderninha que vê nela uma profissional promissora. "Educação" é um filme baseado na autobiografia de Lynn Barber que revela a virada da revolução sexual, na qual as mulheres passaram a questionar a obrigatoriedade do casamento e a investir nas suas carreiras, redimensionando o lugar do homem em suas vidas.

"Jogo Justo" (2023), também dirigido por uma mulher, Chloe Domont, se passa 60 anos depois. Nele, um casal de noivos apaixonados trabalha na mesma empresa de finanças, onde têm que manter a relação em sigilo. Surge a possibilidade de uma promoção e rola a fofoca de que ele seria o escolhido. Eles comemoram, afinal, tudo está em seu lugar: o status do homem está preservado e seu frágil ego não será ameaçado, mantendo o equilíbrio da relação.

Mas eis que ela é a escolhida, revelando que a ordem dos fatores altera o produto. Ambos, cada um à sua maneira, estão presos na mesma trama. O filme expõe a lógica da castração que Freud apontou há mais de cem anos e que está alhures da questão da ausência de pênis nas mulheres.

Ali vemos como o homem fragilizado, e não a mulher, é a figura mais assustadora da castração. Ele é suposto como "o" fiador. Tê-lo ultrapassado é perturbador para ela também, que ora tenta recuperar a todo custo seu amor, ora se identifica com a cretinice dos homens do escritório. Do lado dele, só resta tentar diminuí-la para não ser obrigado a reconhecer seu verdadeiro tamanho. Thriller sexy e violento, o filme se tornou um marco pela arrojada solução final. Não darei spoiler, mas se a dinâmica da castração é perene, o mesmo não se pode dizer das formas de superá-la. Imperdível.

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