Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente Todas maternidade

Dia das guardiãs do cuidado

Como mães nunca estamos à altura da abnegação exigida para nosso papel

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A maternidade tem sido um campo de disputas acirradas sobre o valor, o sentido e a definição do que seria uma mãe. A mãe é alguém que assume para si o cuidado da prole, alguém que é reconhecida como responsável pelos filhos perante a lei ou, ainda, alguém que deu à luz. Muitas vezes essas três situações não se dão juntas, revelando que a expressão "mãe só tem uma" é uma distorção atroz do que se passa na realidade.

O lugar das mães é sempre definido dentro de uma certa narrativa cultural, pois não se trata de um fato da natureza —como querem os que ignoram que somos efeitos da linguagem que nos fez humanos. Paradoxo que Lacan não cansou de demonstrar.

Mãe e filho abraçados
Patrícia Prudente/Unsplash

As mulheres têm sido as guardiãs dos cuidados —dos filhos, dos velhos, dos maridos, dos irmãos, dos alunos, dos pacientes…—, ocupando um lugar paradoxal, pois seu ato se dá na contramão do pacto de exploração e competição que rege as relações sociais. Mas, se a casta materna entrar em greve, é a própria estrutura de exploração do trabalho não remunerado que se verá abalada, ou seja, o prédio no qual se sustenta o capitalismo.

Daí a necessidade de incensá-las por um lado e patrulhar suas aspirações por outro. Fomos criadas para uma ética do cuidado em uma sociedade que despreza o cuidado, mas não pode prescindir dele sob pena de sucumbir. Daí nossa posição insólita e contraditória.

As mulheres bancam a maternidade em situações extremas como estupro, miséria e abandono. Para isso, sempre se apoiaram umas nas outras, criando redes de solidariedade. Os movimentos de mães periféricas, por exemplo, que lutam por moradia, creche e subsídios e contra a violência policial fazem história no Brasil e se baseiam na lógica do apoio mútuo.

A mãe só é santa na medida em que aguenta seu martírio calada. Fora daí ela é a outra. E de fato somos todas a "outra", nunca à altura de uma abnegação que não é exigida de mais ninguém. Os homens mal arcam com filhos planejados.

Mães que se arrependem de ter tido filhos mesmo os amando, mães que os deixam com outras pessoas para seguir suas vidas, mães que não gostam de seus filhos são tidas como loucas, doentes ou más. Diria mais, elas chegam a perder o direito de se dizerem mães. Homens na mesma situação são tidos como pais inadequados, mas continuam sendo pais.

Numa sociedade que prezasse o cuidado de seus integrantes, que se baseasse no pacto de solidariedade, o Dia das Mães seria a celebração de uma das muitas situações nas quais o cuidado se dá de forma abnegada e intensa. Mas, infelizmente, a data comemorativa tem servido como compensação aos outros 364 dias de descaso com as mulheres e as mães, tanto na esfera pública quanto na privada.

Para o sujeito moderno, a maternidade se tornou o esteio narcísico da suposição de que alguém, no caso a mãe, só teria olhos para ele. Fantasia que a psicanálise não cansa de denunciar.

Não podemos perder a oportunidade de celebrar o que nos une na transmissão de um saber sobre a dedicação, a intimidade, o afeto. Aprendemos a cuidar e devemos transmitir essa aprendizagem para as próximas gerações. A questão é como romper o pacto de gênero e transmitir a centralidade do cuidado para os homens também. Ou, ainda, o que mais precisamos todos sofrer para reconhecer que o que mantém uma sociedade é sua capacidade de investir em seus laços comuns?

Feliz Dia das Mães, guardiãs dos cuidados de nossa combalida sociedade.

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