Vinicius Mota

Secretário de Redação da Folha, foi editor de Opinião. É mestre em sociologia pela USP.

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Descrição de chapéu Livros

O aprendizado no limiar da destruição

'A Montanha Mágica', de Thomas Mann, completa 100 anos

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A literatura explora as margens da morte há milênios. Nessa fresta, um pouco para cá ou um pouco para lá do desencarne, trafegaram Homero e Dante, Shakespeare e Machado.

"A Montanha Mágica", monumento dessa tradição, completa o centenário. A história do jovem alemão que reserva três semanas para visitar o primo num sanatório alpino para tuberculosos tomaria outro curso sem o turbilhão de transformações entre o fim da década de 1910 e o início da seguinte.

Cartão postal não datado de sanatório em Davos, na Suíça - Emil Meerkamper/ETH-Biblioteca de Zurique/Arquivo Thomas Mann/Divulgação

Em novembro de 1924, quando Thomas Mann apresentou a saga de Hans Castorp, a Europa reemergia de guerra e epidemia arrasadoras e desbundava nas artes e nos costumes, enquanto programas totalitários, com pés já fincados na Rússia e na Itália, se alastravam na velocidade do automóvel.

A clivagem brusca permitiu a Mann tratar como se fossem de velhos tempos, porque anteriores à guerra, episódios que no romance mal perfaziam dez anos. Não que isso deixe de ser uma artimanha do narrador, pois as sementes da nova realidade estão esboçadas ao longo das 1.200 páginas.

O antissemitismo, o cientificismo e sua antítese negacionista, as ideologias integristas e autoritárias, a impotência e o declínio do liberalismo e o contágio das mentes por radicalismos são pacientemente tematizados no romance, em peripécias e diálogos envolvendo personagens inesquecíveis.

A apreensão resvaladiça do tempo exala das divagações do protagonista sobre o movimento dos astros e a passagem das estações e do próprio ritmo descompassado da narrativa. A nascente psicanálise freudiana embala as intervenções de médicos e a descrição de sonhos. Até um modismo da época, as mesas para comunicar-se com os espíritos, ganha a sua vez na montanha mágica.

Destacando-se dos tópicos mais ou menos datados ou pedantes que percorrem o romance, a sua proposta central, de que o protagonista atravesse um longo e arriscado processo de aprendizado no limiar da destruição física, é um traço que confere perenidade à obra.

Castorp não volta para casa na data planejada. Recebe o diagnóstico de doença pulmonar e ficará sete anos no sanatório. O leitor desconfia de que a enfermidade é também pretexto para o herói mergulhar nas experiências que o excitam naquela atmosfera rarefeita.

E são, todas, aventuras pedagógicas à beira do abismo. A morte é corriqueira no instituto, os trenós com os cadáveres assombram Hans Castorp, seus convivas podem desaparecer da noite para o dia. Ele próprio, com febre baixa e persistente, não está seguro.

Ávido por chacoalhar a sua vida sem graça, ele se embrenha nessa fina cartilagem que separa os vivos dos mortos, mas não a ponto de cruzar a última barreira. Mais que encontrar solução para suas angústias, o que lhe dá prazer é a experiência ("placet experiri"). Fascina-o o percurso, não o desfecho.

Desafia o aprendiz a relação com Leo Naphta —o jesuíta difamador da ciência e prosélito do terror reacionário e do comunismo cristão. Apesar das advertências de Lodovico Settembrini, iluminista fervoroso, para que Castorp não se aproxime sem guarida daquele niilista adorador da morte, o jovem alemão jamais hesita em ir ter com Naphta. Não concorda com ele nem com Settembrini, mas não se distancia deles.

Que o jesuíta e o italiano prossigam em seus debates intermináveis pela conquista do jovem em formação é tudo o que Castorp deseja, mas a violência vai romper esse equilíbrio prazeroso. O embate entre os mestres extrapola o domínio do discurso e termina num duelo de ópera bufa, em que Naphta prefere se matar a atingir o adversário com sua pistola.

Thomas Mann em 1937 - Coleção Van Vechten/Library of Congress/Divulgação

A brutalidade interrompe o aprendizado, o que mais tarde a eclosão da guerra vai deixar patente ao expor o soldado Castorp à crueza destrutiva do campo de batalha. A narrativa se acelera, troca o passado pelo tempo presente e se despede do herói na iminência de ele ser exterminado.

"Aonde nos levou o sonho?", lamenta o narrador. O hábito humano de passar das ideias às metralhadoras derrubou o personagem mais sábio. Ele só queria que o papo continuasse.

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