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Parte da esquerda despreza antissemitismo, dizem autores

Pesquisadores afirmam que estigma do judeu dominacionista, que contagia extrema direita, também influencia progressistas

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Anna Virginia Balloussier
Anna Virginia Balloussier

Repórter especial, escreve sobre religião, política, eleições e direitos humanos.

[RESUMO] Guerra entre Israel e Hamas reacende o debate de que o antissemitismo é normalizado não apenas por grupos de inspiração nazista como também por muitos da esquerda, historicamente ligada a populações oprimidas. Segundo pesquisadores, alas progressistas se deixam levar por estereótipos e desprezam manifestações de preconceito contra judeus.

No Ano-Novo de 2017, uma rádio da BBC transmitiu uma leitura do ator Jeremy Irons de poemas de T.S. Eliot. Um deles descreve um judeu acocorado e "coberto de pústulas". Outro cita: "Os ratos estão debaixo das pilhas, os judeus estão debaixo do lote".

"Por melhor que seja o escritor", pondera o comediante David Baddiel, "nenhum outro grupo minoritário seria comparado a ratos ou vislumbrado como qualquer outro estereótipo racista negativo semelhante na rádio". Não seria espantoso levar ao ar um livro de Agatha Christie, por exemplo. "É, no entanto, inconcebível que alguém ouça a voz de Jeremy Irons dizendo: e agora, ‘Ten Little Niggers’!"

Manifestantes protestam contra o antissemitismo em Marseille, na França - Clement Mahoudeau - 12.nov.23/AFP

A famosa obra de Christie, lançada em 1939, já não é mais chamada assim em novas edições. No Brasil, foi de "O Caso dos Dez Negrinhos" para "E Não Sobrou Nenhum". O bisneto da autora justificou a mudança dizendo que não cabe mais "usar palavras que podem machucar".

Não consta a Baddiel que a onda revisionista de obras culturais cheias de preconceitos normalizados no passado contemple manifestações antissemitas. Sua tese de que nem o campo progressista, historicamente aliado a grupos oprimidos, dá muita bola para "uma das minorias mais perseguidas da história" é resumida no livro "Judeus Não Contam" (Avis Rara).

A edição brasileira é de 2023, mas a versão original do livro precede em mais de dois anos os ataques do Hamas em 7 de outubro e a subsequente resposta bélica de Israel na Palestina, coalhada de acusações de crimes contra a humanidade.

Sim, o britânico se sente conectado "de um jeito depressivo" com os horrores vividos por israelenses naquele dia. "A maior parte da família da minha mãe foi morta nos campos de concentração, sei como um extermínio se parece." Ter esse sentimento, contudo, não o faz cúmplice da ofensiva tramada pelo governo de Binyamin Netanyahu. "Achar que todos os judeus são responsáveis pelo que o Estado de Israel faz é algo incrivelmente racista."

Essa narrativa chega a relativizar suásticas pichadas em sinagogas europeias, mas alguém vai apontar antissemitismo no ar?

Baddiel, que esteve no Brasil para abrir o Festival Literário do Museu Judaico de São Paulo, usa sua terra natal como referência. "No Reino Unido, o antissemitismo é muito forte. Mas, se você tenta levantar esse ponto, alguém grita sobre Gaza. 'Como ousa? Tem gente morrendo em Gaza'."

A percepção de culpa coletiva não atinge outros grupos com tanta virulência, diz. "Muçulmanos, se quiserem falar sobre islamofobia, não têm que primeiro responder o que pensam sobre o Irã, a Arábia Saudita. Já judeus são constantemente questionados sobre o que está acontecendo em Israel antes de uma conversa sobre o preconceito que sofrem."

É uma cobrança que o historiador Michel Gherman, professor do Departamento de Sociologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pesquisador do Centro de Estudos do Antissemitismo da Universidade de Jerusalém, afirma já ter sentido.

Certa vez, enquanto palestrava sobre o conflito Israel-Palestina, conta, um sujeito o inquiriu de onde ele vinha. "Respondi: 'Vim da estação Uruguaiana [do metrô]'. Vincular uma pessoa como eu, que mora na zona norte do Rio, com o que está se passando em Gaza é muito antissemitismo de almanaque."

A intolerância, diz Gherman, começa quando se credita a um cidadão a corresponsabilidade pela máquina de guerra israelense. Em seguida, vem a predisposição em tachar as vítimas do massacre como merecedoras, no melhor estilo "eles que começaram".

Há ainda outro tipo de antissemita, afirma, "que flerta com os negacionistas do Holocausto" ao sugerir que os civis assassinados foram alvejados por soldados israelenses —a atriz Letícia Sabatella foi uma que embarcou nessa conspiração para depois se desculpar.

Uma citação erroneamente atribuída a Voltaire, que de fato tinha antecedentes antissemitas, circula por redes sociais à direita e à esquerda para buscar legitimar, no mínimo, um pé atrás com a comunidade judaica. Ela veio na verdade do neonazista Kevin Strom em 1993: "Para saber quem controla você, apenas descubra quem você não tem permissão para criticar".

O meme que a embala traz um punho adornado com a estrela de Davi esmagando uma multidão. Pode vir acoplado à legenda "siga o dinheiro", como fez o ator e ativista John Cusack.

O conspiracionismo dessa "ideia de que judeus são muito ricos ou muito comunistas", como define Gherman, contagia parte da extrema direita. Basta pensar na ojeriza ao investidor de origem judaica George Soros, a quem o também bilionário Elon Musk já comparou a Magneto, vilão de "X-Men" que sobreviveu ao Holocausto e quer substituir mutantes por humanos como a espécie alfa do planeta.

Alas progressistas, porém, também se deixam levar pelo estereótipo do judeu dominacionista, algo que a causa palestina, com tradicional adesão desse campo, pode ajudar a normalizar. Uma acusação recorrente é que Israel —e, por associação, qualquer um com raízes judaicas— comete contra Gaza um genocídio similar ao que dizimou milhões de judeus no século 20.

Não será preciso se aprofundar nesse mérito, até porque, como afirma o historiador, o direito internacional tem um padrão elevado para diferenciar intenções genocidas das militares, que podem produzir abominações humanitárias sem ter por premissa matar um indivíduo unicamente por ele ser palestino.

Para nutrir preconceitos das duas pontas da régua ideológica, a gramática do mundo ocidental precisou se adaptar, de acordo com Gherman. O típico judeu, afirma, é visto como portador de "pecados originais muito fortes, hábitos condenáveis como a usura e a não crença no messias [cristão]". A diferença é que, agora, ele não é mais percebido como fraco: "O novo antissemitismo o coloca como alvo forte, como alguém que quer dominar o mundo".

Já no século 19 a biologia pós-darwiniana "ou, mais precisamente, o seu uso indevido" cravava que judeus nasciam com certas características inferiores e geneticamente imutáveis, afirma o historiador Leo Spitzer. "Como se, de fato, os judeus nunca pudessem ser o povo dominante." Daí a noção de "der ewige jude", o eterno judeu, que Adolf Hitler capitalizou sinistramente.

Professor emérito de história da Universidade de Dartmouth, Spitzer nasceu na Bolívia após seus pais fugirem de uma Áustria sob jugo nazista, no começo da Segunda Guerra, e migrou para os Estados Unidos quando fez 10 anos.

Ele fala sobre a sensação de deslocamento, como um judeu boliviano de origem austríaca, que o escoltou nos primeiros anos de vida, no livro "Racismo e Antissemitismo: as Trajetórias de Stefan Zweig, André Rebouças e Joseph May" (1989), que agora a Zahar relança no Brasil.

O timing é oportuno: a obra mira questões fulcrais para nossos tempos, como a ligação possível entre os dois "ismos" contemplados no título. Para Spitzer, "a tentativa de manutenção da supremacia branca é o sobrevivente contemporâneo da crença ideológica" de que tanto judeus quanto pessoas de pele não branca "são incapazes de alcançar lugares sociais relegados aos brancos dominantes".

Obviamente, a judeidade pode ser suavizada e até passar batida para alguém com tez clara, mas a cor não é o único determinante para reconhecer alguém como branco ou não branco. Vale lembrar os brasileiros com fenótipo europeu que, no dito mundo desenvolvido, são descartados da branquitude e catalogados como latinos.

Por isso não seria justo, segundo o autor, quando parte da esquerda enquadra judeus em geral como sócios de uma elite identitária. Branqueá-los geraria o efeito colateral de retirar uma vulnerabilidade ainda presente. "Quando tento identificar aspectos da minha infância que permaneceram, uma sensação de mim mesmo como um ‘estranho’ é fundamental", diz Spitzer.

Esse senso de marginalidade não mudou após o Hamas chacinar cerca de 1.200 pessoas. Decerto são "atos brutais", mas que não o fazem se sentir automaticamente um israelense por extensão. "Se precisar me identificar em termos de pertencimento, diria que sou um 'judeu do Novo Mundo' ou, mais precisamente, como um 'cidadão judeu dos EUA que vive em Nova York'." Deveria então receber a fatura pelo que um governo faz do outro lado do mundo?

Para David Baddiel, a esquerda peca quando vê judeus como uma parcela no topo da pirâmide e que, portanto, dispensa a proteção estendida a outras minorias.

"O problema com isso é que judeus são uma 'falha na Matrix', porque, claro, alguns —embora não tantos quanto se pensa por aí— vão bem economicamente e ascendem. Mas, historicamente, isso não deteve matanças. Na verdade, às vezes até contribuiu, pela ideia de que precisam ser contidos por serem bem-sucedidos."

A solidariedade é mais certa se cumprida a tese contida em "People Love Dead Jews" (as pessoas amam judeus mortos), obra da ensaísta Dara Horn. É o princípio de que, para angariar simpatia, melhor que não tenham batimento cardíaco. Se vivem e, pior, lutam, não são tão legais assim. "Por uns dias", diz Baddiel, o mundo se compadeceu pelas vítimas do Hamas, "até Israel retaliar e voltar o esquema binário de bons e maus".

"As pessoas amam o diário de Anne Frank porque é esperançoso", afirma o britânico. "Ela acredita que as pessoas são boas. A ironia é que ela não escreveu a próxima parte." Se tivesse sobrevivido para escrever, talvez também ela não fosse tão legal assim.

Judeus não contam

  • Preço R$ 39,90 (128 págs.)
  • Autoria David Baddiel
  • Editora Avis Rara

Racismo e Antissemitismo: as Trajetórias de Stefan Zweig, André Rebouças e Joseph May

  • Preço R$ 99,90 (408 págs.)
  • Autoria Leo Spitzer
  • Editora Zahar

People Love Dead Jews

  • Preço R$ 88,80 (272 págs.)
  • Autoria Dara Horn
  • Editora W. W. Norton & Company
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