Vladimir Safatle

Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.

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Vladimir Safatle

A astúcia da diferença

Toda vida é produzida por repetições, mas nem todas têm os mesmos efeitos

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Ilustração
Marcelo Cipis/Folhapress

"Se a repetição nos adoece, é ela também que nos cura; se ela nos aprisiona e nos destrói, é ela também que nos libera." Esta frase do filósofo Gilles Deleuze era uma maneira de afirmar a necessidade de compreender como a repetição era um campo tenso de batalha no qual processos antagônicos emergiam.

Toda vida é produzida por repetições, com seus hábitos, suas memórias, seus retornos. Mas nem todas as repetições têm os mesmos efeitos de instauração. A ideia de contrapor uma repetição que nos adoece —ou seja, que nos aprisiona nas malhas do mesmo, do tempo sem acontecimento, no retorno ressentido— com uma outra repetição que nos cura era uma forma de dizer que nosso tempo estaria à procura de uma produção de diferença por mutação, por explosão interna do que parecia já totalmente visto e gasto.

E aqui entra o compositor norte-americano Steve Reich, que provavelmente nunca leu Deleuze e nunca foi escutado pelo mesmo. Um dos principais músicos da atualidade, Reich acaba de lançar mais um álbum com duas de suas peças: "Pulse / Quartet", pelo selo Nonesuch. A ideia inicial deste texto era discorrer sobre suas novas peças aproveitando a ocasião do lançamento do CD. Mas as peças não estão, em definitivo, entre as melhores obras de Reich. O que me levou a um procedimento deliberadamente desonesto, a saber, aproveitar-me da ocasião de um lançamento para falar de outra coisa.

Essa "outra coisa", no entanto, é a própria produção de Steve Reich. De todos os compositores que partiram do minimalismo, com seu trabalho extensivo com a repetição de células motívicas elementares, Reich foi aquele que conseguiu, ao mesmo tempo, ser o mais fiel e o mais infiel.

Suas primeiras peças eram animadas pela ideia de construir obras fundadas na noção de "processo gradual". Tratava-se, de certa forma, de parar o desenvolvimento temporal da música, como quem se fixa em um frame de um filme, para expor um processo gradual de transformação.

Como se pudéssemos ouvir o mesmo produzindo diferenças. Assim, por exemplo, em "Piano Phase" e "Violin Phase", uma frase musical produz um contraponto consigo mesma através de duas vozes que operam defasagens graduais.

Vamos assim do uníssono às mudanças graduais de ataque que ressignificam por completo a estrutura do material. Um material composto de vozes idênticas que, no entanto, produzem continuamente campos de diferenças.

Nascia assim a consciência de que a repetição podia não apenas confirmar significações, mas dissolvê-las. A saturação, a subtração local, a produção de defasagens mínimas e quase imperceptíveis em uma estrutura podiam ser astúcias da diferença em sua força de emergência.

Com essa consciência tácita em mente, Reich produz peças de larga escala para conjuntos maiores, como "Music for 18 Musicians", "Octect", "Six Pianos", entre tantas outras grandes obras. Todas elas conseguem preservar a tonalidade, mas liberando-a de sua direcionalidade ligada à progressão harmônica, mudando radicalmente noções estabelecidas de desenvolvimento musical. O desenvolvimento se dá, em larga medida, por repetição e saturação.

Um dos momentos mais significativos de sua produção se dará, então, com "Triple Quartet", escrita em 1998: uma peça na qual um quarteto de cordas toca em cima de dois outros quartetos pré-gravados em tape.

A referência explícita é o quarteto n. 4 de Bartok com seu uso percussivo e pulsional das cordas. Na peça de Reich, a redução rítmica das cordas e as defasagens constantes de pequenas frases melódicas em cânone produz uma estrutura de tensão contínua que se desloca por cortes abruptos que, no entanto, preservam a forma geral do material. O resultado é uma peça de rara força expressiva e dinâmica conflitual.

Desta forma, abriu-se um campo fértil para que a música pudesse recuperar a capacidade da repetição em produzir experiências de diferença e nos curar desse desejo de confirmação do mesmo que tanto nos paralisa. A música contemporânea certamente deve algo a Steve Reich.

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