Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Descrição de chapéu jornalismo

Novos apocalípticos agora gritam: 'É culpa dos algoritmos'

Incriminar meios de disseminação de informação e cultura é prática tradicional

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O debate sobre o PL 2630 trouxe à tona uma nova versão de um velho conhecido dos pesquisadores da área de comunicação: o "media blaming", ou a imputação ao meio dominante de comunicação dos muito e mui variados males que nos assolam.

Incriminar meios de disseminação de informações e cultura é prática tradicional e geralmente acontece quando se dá alguma inovação com impacto direto na alteração dos modos como as pessoas se informam, interagem umas com as outras ou se integram em alguma forma de comunidade, grupo ou bolha. Repete-se quase sempre o mesmo script: uma inovação modifica a sociabilidade, uma parte da sociedade a adota com entusiasmo, outra parte a teme, vez que não a entende ou antevê a destruição ou a modificação, sempre para pior, do seu modo de vida.

Há muitos anos, Umberto Eco chamou a uns de integrados, aos outros, de apocalípticos. Apocalípticos já morreram de medo de livros, quando estes ainda eram produzidos a muito custo, conservados em pouquíssimos lugares e com parcas possibilidades de influenciar sociedades incapazes de ler. Quando, então, a prensa móvel de Gutenberg tornou fácil a reprodução de livros, e sociedades alfabetizadas os podiam consumir, viu-se a consolidação de um pesadelo, que se tentou controlar (ou regulamentar) de todas as formas: exigência do "imprima-se" da autoridade eclesiástica ou real, censura prévia, criminalização de autores e, não raro, fogueira. O processo que levou à "normalização" do livro secular durou mais de um milênio.

Entre 1327, da abadia do romance "O Nome da Rosa", de Eco —em que o bibliotecário envenenara o último exemplar do segundo livro da Poética de Aristóteles, sobre a comédia, porque não lhe parecia direito que homem tão sábio ensinasse cousa tão errada—, e a massificação da televisão como meio indisputável de comunicação e entretenimento, nos anos 1970 e 80, muita água passou sob a ponte e muitos meios foram demonizados por apocalípticos e adotados por integrados. O cinema, o rádio, os jornais e revistas impressos, todos eles tiveram os seus detratores e gente que admoestava aflita: "não leia, não vá, não veja, nada de bom pode advir disto".

Um desenho técnico, em cinza muito claro, mostra os diagramas de um telefone celular visto de frente, de costas e de lado. No diagrama do celular visto de frente se encaixa a cabeça de um diabo cor laranja. À direita, sobre o diagrama do celular de costas, a figura de outro diabo desenhado em linhas  brancas com os chifres extravasando as laterais do diagrama. As duas cabeças se destacam sobre um fundo cinza escuro dando a impressão de desenhos em negativo.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 9 de maio de 2023 - Ariel Severino

Nos cerca de 60 anos em que a televisão foi o centro da sociabilidade, foi acusada de tudo: corromper os valores familiares e viciar criancinhas, instilar os valores do capitalismo, perpetuar, por enculturação, o patriarcalismo e o conformismo, levar a sem-vergonhice do Rio de Janeiro para Pilão Arcado e Chorrochó, fazer e desfazer presidentes da República, satanizar ou promover movimentos sociais e facções políticas. O diabo a quatro.

Não estou esquecendo da permanente acusação apocalíptica aos games eletrônicos de mudar os nossos meninos em seres tão violentos que, ao menor descuido, compram uma AR-15 e vão à escola ajustar conta com os coleguinhas. É que a cultura dos games é de menor alcance, embora o padrão de imputação "de tudo o que não presta" seja exatamente o mesmo.

Nas últimas semanas, por fim, depois de uma longa gestação que vem desde o final dos anos 1990 —e a pergunta sobre o que os meninos faziam depois que "entravam" na internet—, os novos apocalípticos puderam soltar um grito alternativo: "É tudo culpa dos algoritmos!". E então rematam: "É por isso que é preciso regulamentar as plataformas".

Alguma regulamentação das atividades das empresas de serviços de comunicação digitais parece um clamor sensato e bem disseminado. Mas basta ver a lista dos presumíveis transtornos da vida online nas frases que terminam com "é por isso que se precisa regulamentar" para se concluir que há muito argumento apocalíptico simplesmente reciclado. Tudo o que se dizia do poder absoluto da TV para moldar o debate público, da capacidade viciante da publicidade, da escola de delinquência dos games, do adoecimento mental por culpa de livros e revistas, tudo isso hoje vem pelas "telinhas" ou é manipulado intencionalmente pelos malditos algoritmos e seu domínio behaviorista das pessoas.

Não estou dizendo que plataformas não manipulem, se puderem, como não dei imunidade a livros, impressos, televisão, ao rádio ou ao cinema. Mas o fato é que, como em todo episódio de "media blaming", os apocalípticos se movem com base em fantasias e previsão de danos, não em uma avaliação realista da inovação. Por isso generalizam efeitos negativos e ocultam os positivos, que são a verdadeira razão da sua adoção, subestimam a capacidade dos outros cidadãos de lidarem criticamente com os novos meios e, finalmente, negociam muito mal com o mundo, que, como se sabe, não costuma voltar atrás.

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