Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes

Bolsonaro: autenticidade fingida, fraudes reveladas

Melhor cortina de fumaça para ardis é elogiar a verdade enquanto se manipula a massa

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Praticamente tudo relacionado a Bolsonaro pode, em grande medida, ser descrito pelo campo semântico da falsificação. De adulteração e armação a tramoia e trapaça, abundam ações ou falas de Bolsonaro e do seu círculo íntimo para ilustrar cada um dos vocábulos no caminho: ardil, contrafação, embuste, engano, farsa, fraude, golpe, impostura, logro, manipulação, tapeação. Procure uma palavra cujo significado seja "atitude que visa enganar" ou "situação armada para fazer de conta" e você encontrará um verbete da enciclopédia bolsonarista.

Aparentemente, há um paradoxo entre o que estou sustentando e a extrema valorização bolsonarista do que Adorno chamava o "jargão da autenticidade", o uso da busca pela autenticidade como mera fachada. Bolsonaro foi vendido como um homem autêntico em contraposição aos hipócritas: era o sujeito do "falo, sim, doa a quem doer, sem papas na língua". Disse e fez horrores para se mostrar insubmisso ao politicamente correto, chegando frequentemente ao extremo oposto, o politicamente canalha.

Tudo supostamente contra a hipocrisia, a polidez burguesa, o fingimento. Tudo forjado para agradar muitos públicos que se identificam com "homens do povo" e para corresponder à máxima de que quem fala a verdade não merece castigo e à crença de que a hipocrisia, não a brutalidade e a grosseria, é o pior traço de um caráter. Não é à toa que o jargão da autenticidade se fez acompanhar pelo louvor à verdade —assim, no singular, para dar ares messiânicos à chegada de Bolsonaro ao poder.

Na ilustração de cores fortes, um grande cachorro quente. A salsicha dentro do pão, normal no extremo esquerdo, se transforma numa cauda diabolicamente esverdeada. Encaixa na salsicha, como se fose um dedo, um anel com um grande diamante. Envolvendo o cachorro quente, como uma fita que não deixa sair os adereços, um relogio cor prata com agulhas em forma de tridentes. No lugar de alface, muitas notas de dinheiro em tons verdes, a mostarda escorre em vários pontos para fora do pão. Espetado no topo um pequeno cartazete azul claro, desenhados nele um halo de santo e duas asas de anjo.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 22.ago.2023 - Ariel Severino

Não há, no entanto, melhor cortina de fumaça para ardis e maracutaias do que se elogiar a verdade e a autenticidade enquanto se investe, por meio de subterfúgios, na manipulação das massas. Tem até uma expressão latina para tanto: Ars est artem celare. O segredo da arte é esconder o artifício, parecer natural, espontâneo. Daí a espontaneidade planejada de um presidente "pão com margarina", que toma café em copo americano, adora comer o dogão da esquina, com ketchup escorrendo pelos dedos e pingando na camisa, a fim de deliberadamente corresponder ao modelo do homem simples com quem tantos se identificam.

Findo o governo, exibe-se o que estava por trás do palco e por debaixo dos panos, escancara-se o engenho. Esqueçam que ele foi eleito à base de falsificação de informações sobre seus adversários; foco no presente. O sujeito orquestrou um levante popular para poder expedir uma GLO e dar um golpe, de verdade, fingindo que estava protegendo a ordem constitucional. Autorizou a inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19 no sistema do Ministério da Saúde para emissão de certificados que permitiram sua viagem precipitada aos Estados Unidos. Quer mais armação do que isso?

Na semana passada, Walter Delgatti acusou Bolsonaro e o seu entorno de encomendar-lhe: a simulação de um código fonte da urna eletrônica, inserindo nele linhas para fingir que era possível votar em um candidato e o voto ser computado para outro; que assumisse um grampo inverídico de uma conversa fake do ministro Alexandre de Moraes, com o intuito de engabelar os cidadãos; uma aparição do hacker na propaganda de Bolsonaro, mentindo ao público que era possível fraudar o processo eleitoral. Além de oferecer: a promessa de que, se fosse descoberto e acusado pelas adulterações cometidas, receberia indulto presidencial; garantia de carta branca para fazer o que fosse necessário para ludibriar o público.

Em semanas anteriores, soubemos da mutreta da vaquinha digital solicitada para que Bolsonaro pudesse pagar multas por descumprimento da legislação sanitária. Se não fosse o Coaf ou o jornalismo, não saberíamos que o pobre homem arrecadou e malocou em suas contas a bagatela de R$ 17,1 milhões, suficiente para pagar 17 vezes as multas recebidas —que não pagou e, provavelmente, serão perdoadas pelo governador bolsonarista de São Paulo— e equivalente a oito vezes tudo o que o honesto cidadão amealhou ao longa da vida. Quando a informação veio a público, a resposta foi ainda turbinada pela fingida autenticidade: o que sobra "dá pra tomar um caldo de cana e comer um pastel com dona Michelle". No Bahrein, claro.

E ainda estamos às voltas com as denúncias de que o ex-presidente, como um desses ditadores fugitivos exilados no estrangeiro, teria mandado homens de sua confiança transformar em dinheiro vivo joias e valores que não eram seus. Tudo clandestino, à socapa, como convém a um homem autêntico, de família, temente a Deus, simples e, obviamente, adorador da verdade.

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