Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes
Descrição de chapéu jornalismo

Na transmissão de boatos políticos, confiança é tudo

A tia do zap é fonte decisiva, pois, se nela confio, reduzo a desconfiança habitual

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Escolha qualquer tema que tenha sido objeto de ondas de fake news e teorias da conspiração e você encontrará multidões de crentes em sua veracidade. Principalmente naquele instante em que estão saindo quentinhas do forno em que são fabricadas. Quantos não acreditaram em fake news sobre microchips nas vacinas, boatos sobre a inexistência do vírus, rumores com alegações e exemplos de fraude nas urnas, boatos sobre cancelamento de eleições, teorias da conspiração sobre resultados antecipados, falsas informações sobre mudanças na Constituição ou sobre competências das Forças Armadas no equilíbrio dos Três Poderes?

Tenho amigos que ainda acreditam, com diversos graus de convicção, em alguns desses boatos, embora demonstrem forte ceticismo em relação a qualquer uma das últimas dez denúncias e acusações envolvendo, por exemplo, o clã dos Bolsonaros, não importa se venham do jornalismo, da polícia ou do Judiciário.

Perguntei-me como tal coisa era possível, há duas semanas, e apresentei a explicação mais frequente na pesquisa sobre boatos, inclusive os estudos que mais diretamente tratam de fake news: temos uma forte tendência a considerar plausíveis quaisquer boatos, notícias ou informações cujos conteúdos se alinhem ao que já julgamos saber e crer. E, ao contrário, quanto mais divergentes das nossas certezas forem as informações, mais portas lhes serão fechadas. Começamos com uma dose considerável de ceticismo e descrença, mas facilmente chegamos ao ponto de nem sequer aceitar sermos expostos ao conteúdo de determinadas fontes, uma vez que já damos como certo que mentem e distorcem contra nós.

Na ilustração de Ariel Severino, na esquerda, o desenho de uma escultura greco-romana (similar ao Moisés de Miguel Angelo) estende o braço esquerdo com um celular na mão. Do celular parte um feixe de luz amarela, para a direita da ilustração, que ilumina uma série de braços, em tons esverdeados, estendidos para o céu e segurando celulares nas mãos.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 29 de agosto de 2023 - Ariel Severino/Folhapress

Sim, fontes importam. Na verdade, o que importa mesmo é o juízo que se faz sobre a credibilidade das fontes, que tende a ser integralmente transferida para as coisas que elas contam. Assim, se quero que um boato seja bem-sucedido, um ótimo recurso é atribuí-lo a uma fonte confiável, dotada de autoridade e/ou bem posicionada na economia da informação. Ou, alternativamente, fazer com que o elo mais próximo do ouvinte na cadeia de transmissão seja alguém em que ele confie.

A tia do zap é uma fonte decisiva, pois, se nela confio, reduzo o ceticismo e a desconfiança habituais e dou atenção e credibilidade ao que está sendo dito. Mas credibilidade é um capital social, depende do reconhecimento dos outros, e não é necessariamente sinônimo de autoridade constituída, especialização ou profissionalismo. A credibilidade pode vir do afeto e da identificação. Baixo a guarda em virtude da afeição e da confiança recíprocas, do reconhecimento da boa-fé e do discernimento dos meus líderes morais e intelectuais, da admissão de que a pessoa que escuto está do mesmo lado que eu.

É isso que leva alguém a confiar mais no amigo que lhe repassa o boato do que no jornalismo, na agência de checagem ou no TSE que o desmentem. É que nestes ele não crê, certo de que estão numa maracutaia contra o seu lado, de que têm uma agenda oculta e hostil aos seus interesses. Por isso é que, nas inundações de fake news, a tia do zap pode gozar de mais credibilidade e por mais gente do que o editor do jornal mais respeitado país.

Eis por que todo grupo que se dedica a usar boatos falsos como meio de propaganda precisa, ao mesmo tempo, trabalhar em duas frentes. De um lado, cuidar de construir cadeias de transmissão na forma de verdadeiras comunidades de pessoas que, mais que compartilhar conteúdos, compartilhem uma visão. A produção e a disseminação em fluxo contínuo de fake news com o mesmo tema e inclinação são antes de tudo meio de construir e radicalizar redes ou comunidades de crentes na mesma fé política. Para isso foram utilizadas as mídias sociais, que funcionaram como centro logístico para embalar e despachar fake news para todo o país, além de servirem como meios para construir comunidades de crentes nos mesmos boatos. Não é apenas criar um boato e então procurar alguém para disseminá-lo; a rede de transmissores deve estar preparada e ajustada.

A parte complementar do processo consiste em um enorme investimento na destruição da confiança nas fontes habituais de conhecimento e informação —o jornalismo, intelectuais, a Suprema Corte, a universidade, a ciência— que possam rivalizar em credibilidade como fonte de informação. Fake news, em suma, não apenas geram a rede de confiança necessária para a própria reprodução; também trabalham para reduzir os anticorpos produzidos pelo organismo social que poderiam impedir ou dificultar a sua transmissão.

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