Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes
Descrição de chapéu Rússia guerra israel-hamas

A guerra da propaganda: lições do passado

Nada de novo sob o sol da propaganda entre as guerras do século 20 e do 21

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Como estamos em guerra de novo, voltei ao meu manual de propaganda bélica de cabeceira. Que estamos em guerra, creio que ninguém duvidará. Não me refiro, claro, apenas às guerras em sentido estrito —Rússia e Ucrânia, Israel e Palestina—, mas também aos conflitos políticos deflagrados como guerra cultural e guerrilha ideológica, que nem sempre matam, mas arrastam países à destruição e terminam em tentativas de golpes de Estado, como vemos seguidamente desde 2016.

E o manual a que me refiro é, na verdade, um tratado muito bem documentado sobre o uso da propaganda na Primeira Guerra. Chama-se "Propaganda Technique in the World War" e foi publicado por Harold D. Lasswell em 1927. Na guerra, diz ele, desde que a meta a ser alcançada passe por alguma forma de convencimento das pessoas, a propaganda tem que ser considerada.

Nos conflitos, as mentes são tão importantes quantos as armas e as pressões econômicas, pois são elas que mobilizam, motivam ou desmoralizam, recrutam, engajam, justificam, superam ou criam resistências à participação, dão ou retiram superioridades morais, tornam os sacrifícios toleráveis ou inaceitáveis. Por isso, as notícias e boatos da propaganda são tão importantes quantos mísseis, dinheiro e músculos; a propaganda é a guerra por outros meios, é a guerra por meio de ideias, conceitos, cognições, sentimentos e atitudes.

Lasswell dedica um inteiro capítulo à satanização do "outro lado" durante um conflito. Quando a guerra está prestes a iniciar, o trabalho da propaganda consiste em fazer com que se acredite que foi o inimigo quem deu início às hostilidades e que a guerra, a este ponto, não só é inevitável, mas o único recurso possível para se enfrentar o mal. Uma vez, contudo, que a guerra está em curso, é preciso reforçar a motivação para se manter em um conflito que já mostra o seu lado monstruoso e exige sacrifícios. E isso se faz por meio da reiteração de exemplos da depravação do inimigo, que demonstrem que se a guerra é feia, o inimigo é muito pior.

Na ilustração, em tom avermelhado escuro, de Ariel Severino, vemos desenhada uma mão com um lápis, que por sua vez, desenha uma segunda mão. Essa segunda mão desenha uma terceira… que, seguindo a continuidade da ação proposta, desenha duas mãos juntas fazendo uma sombra chinesa. A sombra, criada sobre o fundo branco, é a da cabeça de um lobo furioso, de perfil e com a boca bem aberta que mostra ameaçadoramente grandes dentes afiados.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 1º de novembro de 2023 - Ariel Severino/Folhapress

O código moral do público vai determinar os temas e as ênfases nos exemplos de maldade que precisam ser apresentados. De toda forma, ninguém resiste a responder com estupefação e ódio ao inimigo diante de exemplos de atrocidades. E quanto mais vulneráveis e inofensivos forem as suas vítimas, mais serão óbvias razões para odiar o inimigo. O que outro faz ou fez com "mulheres, crianças, idosos, padres e freiras, prisioneiros e não combatentes mutilados" não será esquecido nem perdoado.

A originalidade e a verdade dos relatos estão longe de ser indispensáveis, mas só um inimigo degenerado e cruel é capaz de degolar crianças ou matá-las de fome, de violentar mulheres e sequestrar velhinhas, de bombardear hospitais ou metralhar garotos.

Para rematar a convicção de que o inimigo é sombrio e perverso, a propaganda deve manter ativa uma lista de crimes perpetrados pelo outro lado, o catálogo de infâmias. Desumanidades, genocídio, impiedade, tudo listado e contabilizado. Tudo deve ser fartamente ilustrado com "fotografias de cadáveres mutilados e aldeias devastadas". Se possível, testemunhas oculares devem contar a sua própria história, depoimentos de quem esteve com o inimigo e mudou de lado, enojado com tamanha iniquidade, devem ser publicados, assim como relatórios assinados por pessoas de reputação.

A este pronto, a contrapropaganda do inimigo já estará ativada para a negação: "as histórias de atrocidade em massa e destruição intencional são generalizações maliciosas de alguns exemplos individuais lamentáveis", dirá; o inimigo é vil e falso, não se deve crer em uma palavra da sua boca. É quanto aparecem os exemplos de atrocidades e infâmias realizadas pelo lado que primeiro acusou.

Cem anos antes das invenções das fake news, Lasswell já advertia aos seus leitores que "a propaganda real, onde quer que seja estudada, tem um grande elemento de falsificação. Isso varia desde colocar uma falsa data em um despacho, passando pela impressão de boatos não verificados, chegando até à ‘encenação’ de eventos". Os exemplos são copiosos, vão do uso de imagens, em parte retocadas, do pogrom judeu de 1905 como se fosse uma nova atrocidade inimiga, à falsificação de edições inteiras de jornais do outro país. Ou a invenção pura e simples de fatos.

Nada há de novo sob o sol da propaganda entre as guerras do século 20 e as do século 21. Nem sequer o uso dos horrores como meio de criar animosidade, alimentar o ódio e manter as pessoas em estado permanente de conflito.

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