Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes
Descrição de chapéu violência

Entre gangues e justiceiros, para onde pende o cidadão comum?

Escolher entre os dois grupos só faz sentido quando já se desistiu do Estado

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Este país está tão imerso em polarização que, no debate público, as pessoas são pressionadas a tomar partido entre os bandidos das gangues de rua que fazem arrastões no Rio de Janeiro e o grupo de justiceiros que surgiu para policiar as fronteiras do seu território, selecionar quem pode entrar e distribuir punições arbitrariamente.

Naturalmente, as coisas não foram apresentadas de maneira tão direta. A direita retratou os vigilantes, flagrados exibindo soco-inglês, perseguindo e espancando supostos bandidos nas ruas da zona sul do Rio, como cidadãos heroicos que, diante da ausência total do Estado, se organizaram para autodefesa.

Por outro lado, a esquerda convenientemente dissociou os que passaram o arrasto e tocaram o terror na cidade das vítimas perseguidas pelos justiceiros dos bairros de classe média, referindo-se apenas a "gente da favela" e "corpos negros". São as mesmas pessoas? Para a direita e para o cidadão comum da cidade, é provável. A esquerda desconversa.

Os fatos são deploráveis. Acredite-se nos jornais e nos inúmeros vídeos de usuários que inundam as plataformas de redes sociais, o Rio de Janeiro está à mercê de arrastões e espancamentos. Relatos de abusos sexuais, vídeos de surras coletivas em pessoas que por acaso estavam no caminho das gangues, a violência gráfica e registrada como se fosse coisa cotidiana e normal: o Rio distópico que emerge aos olhos do Brasil parece uma terra sem lei, onde o cidadão comum vive aterrorizado pelos que dominam as ruas pela força bruta.

Na ilustração, o corpo de um homem jaz sobre uma lamina não muito grossa de piso branco, jogando sombra sobre o chão o que acrescenta mais peso ao corpo. A cabeça e seu braço direito, pendem inertes da borda do piso. Por baixo, como se fosse um subsolo dessa lamina de piso, um emaranhado de artérias em vermelho intenso.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 19 de dezembro de 2023 - Ariel Severino/Folhapress

A atmosfera de "salve-se quem puder" costuma ser um viveiro fecundo para o surgimento de forças que respondem à brutalidade com mais brutalidade, à margem da lei. As famosas milícias do Rio não surgiram em circunstâncias semelhantes? Os grupos de extermínio não tinham essa função?

Tomar partido é absurdo em todos os aspectos; apenas em um país doente de raiva e vontade de brigar alguém pode considerar tal coisa plausível e aceitável. Escolher entre justiceiros e criminosos é uma decisão que só faz sentido em um universo amoral, onde já desistimos da possibilidade de ter Estado, aplicação da lei e segurança pública.

No entanto, há pessoas basicamente exigindo que a esquerda apoie os jovens pobres dos arrastões, enquanto a direita fica ao lado dos vigilantes. Argumentam que a esquerda deve apoiar essa "gente da favela", cuja brutalidade é reativa à opressão estrutural. São pessoas cuja violência sofrida é normalizada por todos, pois, como explicou um notável comentarista, historicamente "seus corpos são considerados como se não valessem nada".

Tem sido assim. Quando a esquerda transforma uma pessoa em um "corpo" —um "corpo negro", por exemplo— emite imediatamente um salvo-conduto, e o cidadão, não importa o que tenha feito, não pode mais ser tocado. Por outro lado, quando a direita veste um brutamontes abusador como um "cidadão que se importa com a vizinhança" (concerned citizen), simbolicamente lhe fornece um distintivo, um excludente de ilicitude e a necessária superioridade moral. Às vezes, até um porte de armas.

No entanto, o jogo que estamos vendo no debate público não reflete a experiência das pessoas comuns deste país. A população não está presa no impasse entre as narrativas e representações da esquerda e da direita. A má notícia para os que temos posições progressistas é que o canto da sereia da direita é acompanhado pelo coral de quem vive apavorado com a violência urbana.

Não há uma escolha difícil quando à mesa se tem a solução instintiva que diz que a violência deve ser respondida com mais violência e a solução esquerdista que diz que criminosos são, na verdade, o Estado e o sistema e que o criminoso imediato é, na verdade, uma vítima.

É fácil entender isso. A população realmente se sente desamparada e busca respostas. Gostaria de contar com a segurança pública, ter de volta o direito de usar as ruas sem correr risco de morte, roubo e estupro, sair à noite, ir a um bar, à praça ou à igreja, ficar ao ar livre com os amigos. Mas, se essa condição não está disponível, ela negocia com a realidade e aceita, mesmo que temporariamente, qualquer coisa que faça cessar a sensação de injustiça, de estar à mercê "da bandidagem" e de ser presa fácil para as gangues que infestam a cidade.

Para quem vive a experiência constante de ser vítima do crime, as sociologias identitárias soam como uma discussão bizantina sobre o gênero dos anjos. Lamento ser eu a lhes contar isso.

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