Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes
Descrição de chapéu internet

Causas ao alcance de um clique: a militância na era digital

Para um número crescente de pessoas, militar é preciso; viver não

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Na bibliografia sobre os usos sociais da internet, já no final dos anos 1990, discutia-se como a vida online estava reduzindo o esforço necessário para militar politicamente. Imagine-se o custo de tornar-se militante antes que uma rede de interações digitais conectasse todos.

Era preciso se juntar a um movimento ou filiar-se a uma organização, participar de reuniões, conviver, aprender os protocolos dos ativistas de uma causa específica, adquirir ao menos alguma informação, se não uma formação. Tudo isso demandava tempo, trabalho, energia e comprometimento.

Além disso, havia de lidar com certos desafios, como encontrar pessoas próximas que compartilhassem das mesmas causas, arcar com os custos sociais de discutir temas políticos sensíveis com desconhecidos e aceitar os níveis de afinidade ideológica disponíveis no seu ambiente social.

Hoje, quando em cada bolso há um celular e em cada um desses dispositivos um número potencialmente ilimitado de janelas digitais conectando-nos uns aos outros, os custos tradicionais associados à participação e ao engajamento político despencaram.

O militante de wi-fi e ar-condicionado é, de certo modo, o oposto do tradicional ativista de movimentos sociais ou sindicatos: em vez de assembleias, há um ambiente de interação social construído em uma plataforma digital; em lugar de formação e informação, uma autoeducação fast food política online em sites e redes customizadas de acordo com o gosto e a capacidade do freguês; ao invés do desconforto de passeatas e confrontos de rua, a tranquilidade de sentir-se engajado em melhorar o mundo apenas rolando telas em um notebook, tablete ou celular; no lugar da faixa, do cartaz e da palavra de ordem na rua, sob calor ou chuva, correndo o risco de sabe-se lá o quê, opta-se por postar furiosa e intensamente em favor da causa que se adota ou contra aquela que se detesta.

Junte-se à transformação digital das interações sociais a convicção de que "tudo é política" e se terá uma foto do nosso ativismo cotidiano. Tudo se torna uma forma de militância, um tipo de ação política coletiva, cujo propósito final é promover uma causa e melhorar o mundo. Isso significa, por outro lado, que se conferem seriedade política e comprometimento existencial a qualquer tipo de ação, pois, afinal, militar é coisa séria e nobre.

Na ilustração sobre um chão cor azul turquesa, três celulares, que aparecem como se fossem entradas com escadaria do metrô. De um desses telefones surgem subindo as escadas, as figuras de um operário com o braço estendido e o punho fechado, na outra mão segura um megafone. Atrás dela, na fila, um homem vestindo camisa e gravata com uma pasta numa das mãos e o braço estendido para a frente com o indicador também estendido. E, por último, uma jovem, segurando livros e cadernos e com a mão livre, braço estendido para a frente e dedo indicador igual ao anterior. Todos os três gritando consignas.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 20 de agosto de 2024 - Ariel Severino/Folhapress

Milita-se pela "linguagem neutra" com a mesma seriedade com que se engaja em causas como a crise climática ou o combate à fome. Não faz muito tempo, referir-se a Dilma Rousseff como "presidenta" era uma posição política explícita e consciente. Era, tecnicamente, militância.

Entre os novos tipos de militantes, o caçador de supremacistas é dos mais intrigantes. O pressuposto é que o supremacista sempre pode ser detectado, mesmo quando se mistura à população, pois está constantemente "soprando algum apito de cachorro", ou seja, emitindo sinais que apenas outros supremacistas reconhecerão. O caçador de supremacistas, por sua vez, vigia implacavelmente fotos no Instagram, com paciência e perspicácia, até que um "gesto supremacista" revele o monstro moral disfarçado.

Já imaginaram como isso deve ser gratificante? Sem sair da poltrona ou largar o celular, o militante consegue contribuir decisivamente para melhorar o mundo. Além disso, eleva seu ego ao demonstrar que vê e decifra coisas que o cidadão comum é incapaz de perceber.

Quem pensa que isso não é sério, contudo, se engana. Na minha hipótese, uma das melhores explicações para o fato de tantas pessoas —de diferentes condições sociais, níveis de escolaridade, renda e discernimento político— se dedicarem tão intensamente à disseminação de fake news é a convicção de que participar da cadeia de difusão de informações falsas é, de fato, uma forma de militância política.

Para o repassador de fake news, isso é uma ação politicamente relevante e moralmente nobre. Não acha que está envenenando o ambiente social com falsidades sobre os adversários; o que ele faz é desmascarar as maldades do inimigo, revelando o quão sórdido, sorrateiro e desprezível ele é. É assim que faz sua parte para tornar a política um lugar melhor.

Para ser franco, não existe critério que determine se uma ação política é ou não ativismo. Se a pessoa se sente engajada em uma causa, vê-se como militante. Para um número crescente de pessoas, militar é preciso; viver não. As causas políticas dão sentido à existência, enquanto viver, por si só, parece não ter valor. Agora, então, que militar não custa mais do que um clique, quem não milita é que se limita.

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