Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Zeca Camargo

Os selfies que eu não tirei

Ninguém sente falta de fotos quando conto de viagens que estão só na memória

Duas mãos cor de rosa seguram uma máquina fotográfica
Maira Mendes

Recentemente li, não sem um certo nervosismo, sobre mais uma morte por selfie. A expressão, absurda como parece, não é nova nem merece ser comemorada. Esta última notícia dá conta de um turista indiano que caiu numa cachoeira no estado de Karnataka do Norte, na Índia. E é mais um número a ser acrescentado às estatísticas de 2018.

Foram 27 mortes por selfies em 2015, e 68 tanto em 2016 como em 2017, segundo uma fonte inesperada que consultei: o site do genial fotógrafo inglês Martin Parr, que no começo deste ano dedicou um texto brilhante ao assunto (você acha fácil, procurando na internet pelo nome dele mais “death by selfie”). O número, claro, deve crescer neste ano.

Longe de mim condenar quem teve fim tão trágico. A decisão de se arriscar para um registro virtual de que você passou por um lugar é pessoal e inquestionável —cada um sabe como é a melhor maneira de validar sua viagem. Quem me segue no Instagram @zecacamargomundo pode comprovar que sou grande entusiasta desse tipo de foto. Costumo brincar que, com 1,89 m, já nasci com um pau-de-selfie!

Mas a obsessão pela prova de que você visitou um lugar me trouxe uma inevitável nostalgia dos tempos em que, para mostrar que você esteve em algum lugar, o melhor que você poderia fazer era pedir para alguém que estava passando tirar uma foto sua lá. E dos inevitáveis improvisos em línguas que você nem arranhava para pedir esse tão simples favor.

Às vésperas de completar quatro anos de viagens no meu Instagram, quem olhar minha timeline pode ter a impressão de que já rodei, e registrei essas andanças, em boa parte deste nosso planeta. 

De Galápagos a Bali, de Alter do Chão a Lalibela, de Tóquio a Buenos Aires está “tudo” lá, como os selfies caprichados (e seguros) comprovam. Mas e os lugares que visitei antes desse, digamos, movimento? 

Como me lembrar das paisagens por onde passei e de onde trouxe, na melhor das hipóteses, uma foto sem foco com 30% do meu rosto cortado na margem esquerda —quem mandou confiar no casal que estava por ali para clicar aquele momento? Bem, para isso eu vou ter que recorrer mesmo a uma coisa que ironicamente a gente vem esquecendo de usar: a memória. 

Dentre as imagens que tenho só na lembrança: o crepúsculo no fim de um dia em Funafuti (Tuvalu), pensando se a praia onde estava ainda existiria dali a 50 anos, com a subida dos oceanos; o olhar furtivo da “deusa viva” por uma janela de um templo hoje destruído em Katmandu (Nepal); a primeira vez que vi as Torres Gêmeas em Nova York (1981); o mar além das ruínas do teatro antigo teatro de Taormina, na Sicília (Itália); as meninas de tranças elaboradíssimas cantando e dançando num workshop para um filme em Bissau (Guiné-Bissau); El Castillo Divertido —um hotel surreal (o nome já diz tudo), surgindo entre o exuberante verde no litoral oeste da Costa Rica; a igreja do quadrado de Trancoso iluminada só com o luar lá nos idos dos anos 1980; uma nevasca pela janela de um quarto quentinho num hotel em Chamonix (França); a ponta do Mont Blanc ficando para trás no retrovisor do carro logo depois de sair de mais de 11 quilômetros de túnel, rumo à Itália; eu, criança, aos pés do Cristo no Corcovado; o Louvre ainda sem pirâmide de vidro; a Golden Gate em San Francisco (Califórnia) recortadas por brumas; as kinguilas trocando dólar no mercado negro na orla de Luanda (Angola); o sol da meia-noite em Estocolmo num certo verão em 1990; o Bairro Alto acordando em Lisboa logo no começo do século 21; os cacaueiros de São Tomé e Príncipe... 

Parece uma lista grande, mas eu digo que é breve: foi só o que fui lembrando nos últimos cinco minutos. 

A única maneira que tenho de compartilhar com as pessoas que estive lá é contando sobre esses lugares. Que é mais ou menos o que estou fazendo agora. 

Em nenhuma dessas paradas fiz selfies. E fico encantado como ninguém sente falta deles quando falo dessas viagens.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.