Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo
Descrição de chapéu África

Se um viajante numa manhã de primavera

Ainda quero ir a uma corredeira no Chile, uma jangada em Maceió, uma banheira em Maldiva

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A coluna começa numa estação ferroviária e é uma homenagem descarada a uma pequena obra-prima que talvez você reconheça. O trem que chega não apita nem tem pistão. Tampouco solta fumaça, mas uma outra nuvem, a da memória, esconde a localização desse primeiro parágrafo.


Digamos que estou no Japão, indo para uma ilha onde serei recebido por uma abóbora gigante. Não, não estou num desenho de Hayao Miyazaki, mas num cenário de arte e paz. E do topo de um círculo talvez perfeito de Tadai Ando, me transporto para outro espaço circular, agora cercado de cavalos.

Nessa cidade na Toscana, acompanho uma corrida medieval e fico tonto de ver tantas voltas em volta de tanta gente. Saio por torres altas e ruas estreitas e sinuosas e chego inesperadamente a uma praia adormecida em Zanzibar.

Ilha Changuu, em Zanzibar (Tanzânia) - Dong Jianghui - 25.mar.23/Xinhua


Você leu uns três parágrafos e já começa a se apaixonar pela viagem. Em certa altura, observa: "Mas este destino, parece que o conheço. Creio que já fui até lá". E por que não? Se não com um carimbo no passaporte, ao menos como um sonho desperto. Você olha comigo para esse horizonte índico, neste canto da África, e seguimos juntos para um palácio no Rajastão.

Suas paredes são rosa como os flamingos da Flórida, seus contornos, rebuscados como os do Alhambra. O sol entra por transparências furtivas como nos domos de uma sauna antiga em Sultanahmet e você, relaxado pelo calor, agora está no chão de banhos russos em pleno East Village, em Manhattan.

De lá para um outro vagão, este no metrô, que te deixa na confusa estação de Earl's Court, ainda mais confusa nos anos 80, quando controladores de carne e osso conferem se seu bilhete servia para descer ali. Na dúvida, seguimos na linha de Picadilly até King's Cross para já pegar o Eurostar para Paris.

Eurostar trafega em Rully, perto de Paris - Gonzalo Fuentes/Reuters


Ainda está comigo, não está? Então agora você está sentado à mesa de um café, esperando Jean-Jacques e lendo o romance de Édouard Louis, que lhe foi emprestado por madame Bezier. Seu espírito está simultaneamente ocupado por duas esperas: a próxima leitura e parada. Que parece ser no interior de Minas.

Estamos quase sozinhos no meio de uma madrugada fria numa calçadas de pedras erráticas e escorregadias. A única luz é a de um lampião distante, mas quando você chega lá percebe que está dentro de um túnel escuro, rodeado de mil Budas. E que a água que você escuta correr é do rio Mekong.

Barcos cambojanos participam de corrida no Festival da Água, no rio Mekong - Chor Sokunthea/Reuters


Uma moto vem te resgatar a tempo para que você veja a Lua refletida num dos espelho d'água de Angkor e antes que você termine seu martini ali mesmo na garupa, já é de manhã e você comtempla um painel de azulejos de Athos Bulcão na capital que ainda não sabe ser capital.

Numa espreguiçadeira, no terraço de um chalé, no fundo de um vale, há uma mulher que lê. Já estamos no capítulo 8 do livro de Calvino, num trecho do diário de Silas Flannery, mas longe de chegar ao final da viagem.

Ainda quero ir para uma corredeira no Chile; para uma jangada em Maceió; para uma banheira em Maldivas e um chuveiro na Namíbia; quero beber Bomba Carta em Malta, comer um "cha ca la vong" em Hanói, deitar numa rede em Flexeiras, dormir na ponte de uma ilha cujo nome nem perguntei em Belize.

Agora porém estamos talvez exaustos e, deitado sob um tenda ao pé do Atlas marroquino, me sinto mais recompensado que culpado de ter te trazido comigo nesse roteiro inspirado pelo melhor livro de viagem que não é uma livro de viagem jamais escrito.

"Não está cansado de ler?", você me pergunta. E eu: "Só mais um instante. Estou quase acabando 'Se um Viajante numa Noite de Inverno', de Italo Calvino".

O escritor Italo Calvino, que faria cem anos
O escritor Italo Calvino nos anos 1960 - Moiso/Reprodução

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