Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo
Descrição de chapéu África

Considerações sobre a escala final

Por onde eu for, vou sempre ouvir Tony Goes me dizendo "Il faut y aller"

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Entre tantas palavras carinhosas que foram escritas, muitas delas por mim mesmo, sobre Tony Goes, o colunista da Folha morto duas semanas atrás, um traço de sua personalidade infinitamente curiosa talvez tenha sido pouco ressaltado: ele era um grande viajante.


Era também um de meus melhores amigos, como deixei claro no meu próprio texto aqui sobre ele. Mas era sobretudo um companheiro precioso de viagem, algo que percebi logo na primeira vez que fomos juntos para fora do Brasil, no início dos anos 80.

Batizamos pretensiosamente nosso itinerário de "Europa clássica", guiados por um orçamento não muito maior que nossas mochilas. Éramos ainda universitários e me lembro de procurar em Londres, nossa primeira parada, um hotel que não custasse mais que 10 libras por dia.

Fechamos no Trebovir, do qual falei aqui. A única janela da nossa acomodação tinha um vidro quebrado que permitia o gélido vento das madrugadas de um janeiro londrino ganhar com folga do parco calor que as mantas finas das nossas camas oferecia.

O banheiro ficava ao fundo do corredor, com luz suficiente apenas para não te desencorajar de um banho ao menos dia sim dia não. E o café da manhã era risível, mesmo para os padrões de uma Londres antes do verniz de "Cool Britannia" dos anos 90.

Mas Tony nem ligava para isso e eu ia na dele. Éramos dois jovens na capital mais "cool" da música pop e queríamos explorar tudo. Ou ainda, tudo o que ele tinha colocado na sua lista de prioridades de viajante.

Zeca Camargo e Tony Goes no aeroporto Suvarnabhmi, em Bancoc, em abril de 2018
Zeca Camargo e Tony Goes no aeroporto Suvarnabhumi, em Bancoc (Tailândia), em abril de 2018 - Zeca Camargo


Com seu infinito apetite por cultura e informação, Tony antes de viajar sempre esboçava roteiros com coisas, lugares, monumentos que qualquer pessoa que passasse por determinado destino deveria visitar.

"Il faut y aller", dizia ele, citando insistentemente uma expressão em francês que pode ser traduzida como "temos que ir lá". Esse argumento, ainda que de brincadeira, calava todos os outros.

Cansaço? A noite serve para dormir. Orçamento? Podemos passar um dia sem jantar! Desinteresse? Não existia lugar desinteressante no mundo para Tony.

E foi assim que conheci Londres e seus arredores em minúcias que nunca mais revisitei. Mas mesmo a oitava igreja de uma quinta-feira, com Tony tinha sabor de sétima maravilha do mundo.

Com curiosidades que ele tirava da sua memória prodigiosa numa época em que nem se vislumbrava uma Wikipédia, Tony criava narrativas fascinantes sobre qualquer canto. Ao longo de nossos mais de 40 anos de amizade.


E foram tantos destinos...

Borboletário em Luang Prabang? "Il faut y aller". Livraria neogótica no Porto? "Il faut y aller". Ilha de Taquile, no lago Titicaca? "Il faut y aller".

E foi assim pelas medina de Marrakech, Marrocos. Entre as ruínas da ponte de Avignon, França, cantada pelo seu (nosso) herói Tintim. Nos safáris pelo parque Etosha, Namíbia. Sacudindo na traseira de uma caminhonete entre Campo Grande e Amambaí (MS).

Dei quatro voltas ao mundo, mas Tony tinha dado uma antes de a gente se conhecer. Já conheço 117 países, mas ele tinha o trunfo de ter ido ao Irã, para mim, um destino de sonhos. Ele vivia atualizando as listas dos países que visitamos juntos ou mesmo as cidades onde estivemos ao mesmo tempo.

Eu o provocava dizendo que ainda conheceria todos os países do mundo e ele sempre desdenhava de minhas conquistas com uma ironia fina, outra marca sua. Agora eu sigo só nas viagens. Mas por onde eu ainda for, sei que vou sempre ouvir ele me dizendo "Il faut y aller".

De lá onde ele está. Na escala final. No destino que todos nós um dia temos que ir.

Erramos: o texto foi alterado

Na versão inicial deste texto, a primeira citação da expressão "il faut y aller" foi grafada como "if faut y aller"

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