"Não rela nela!" Era pré-pré-Carnaval no centro de São Paulo, e os paralelepípedos do Pateo do Collegio ainda não estavam empanados em glitter quando a rua Direita parou para ouvir o brado retumbante.
Era uma voz jovem. Uma não: três amigas que iam de um bloco a outro com fantasias parecidas, ainda que indefinidas. Tinham asas de fada sobre quimonos e a boca cravejada de cristais vermelhos, como a cantora Iza —qualquer confusão no quesito coerência era compensada pelo quesito animação.
As três iam alegres e autossuficientes quando um homem se aproximou. Fez uma pergunta que não deu para ouvir. Elas responderam “tá acabando lá, estamos indo pro próximo”. Apontaram para a frente com as latinhas de cerveja colorida. O sujeito começou a andar dois passos atrás do trio. No meio do quarteirão, ele levantou a mão e diminuiu a distância.
Antes que o dedo relasse no ombro, veio o berro, que cobriu o som do Tarado Ni Você, vindo da Sé, e o do Filhos de Gil, trazido pelo vento do encontro da Ipiranga com a São João.
A jovem do meio não pediu. Ordenou. “Não rela nela!” Os olhos fixos na cara do desconhecido, com a segurança de quem sabe que está certa. De quem se vê em #MeToo, Agora É que São Elas e Time’s Up.
A rua parou. Várias mulheres devem ter sentido vontade de ajudar. Vários homens, de pedir desculpas em nome da categoria e garantir que nem todos somos assim.
Elas não precisavam de ajuda —ali, naquele momento, tinham umas às outras, e isso bastava. Antes fosse sempre assim.
O silêncio que sucedeu o berro durou um segundo, mas pareceu ir até a Quarta de Cinzas. O homem colocou a mão para cima. Virou as costas. Vai, malandro. O quase assediador foi. Com o rabo no meio das pernas.
E as três saíram rumo à prefeitura, cantando uma música do Caetano, que pergunta “O que dará?”. Uma com a mão no ombro da outra, a mesma boca que gritou arqueada de novo num sorriso. Pareciam prontas para qualquer bloco.
Talvez não saíssem no mesmo cordão de Danuza Leão, Catherine Deneuve e de todas as pessoas que acham que relar é um galanteio inocente, sem o qual a raça humana não se perpetuaria. Ou talvez saíssem abraçadas às que pensam assim, rindo de como iguais podem ser tão diferentes.
Fez-se ali o Carnaval
paulistano.
Ainda há ricos que se pintam como ianomâmis para
ir ao baile da Vogue, e acham que isso é uma fantasia, e não uma ofensa a outras
pessoas, mas especialmente a eles mesmos. Ainda há
gestor que quer transformar o Carnaval de São Paulo na face feia do bonito Carnaval de Salvador. Mas há esperança para o Carnaval paulistano. Há, num calçadão do centro, o “Não rela nela!”.
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