Descrição de chapéu maternidade

Lei para acelerar adoções no país esbarra em falta de estrutura da Justiça

Regra aprovada há seis meses estipulou prazos, mas acabou sendo descumprida

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A estilista Raquel Pereira, 41, que espera a adoção definitiva de Éder, 7  
A estilista Raquel Pereira, 41, que espera a adoção definitiva de Éder, 7   - Henrique Castro/Folhapress
Brasília

“A minha mãe falou pro juiz que queria ter um filho. E o juiz falou que lá no abrigo tinha um filho que queria muito uma mãe.” É assim que E., 7, resume sua jornada antes de conhecer sua mãe adotiva, a estilista Raquel Pereira, 41, de Sacramento (MG).

Em 2016, ela e o marido entravam na fila para adotar uma criança. Na mesma época, E., que estava no abrigo havia dois anos, ganhava decisão favorável para ir para adoção.

A rapidez do processo ficou apenas nessa primeira etapa.

Hoje, Raquel e o filho são exemplos do desafio para concretizar os prazos previstos nas novas regras para adoção de crianças e adolescentes no país. Isso porque, dois anos depois de terem recebido a guarda do menino, ela e o marido ainda esperam pela sentença final da adoção.

“Quando perguntamos, nos dizem que até está indo rápido, porque tem gente que demora cinco anos. Mas não é verdade. Quando você está com a criança, ela já é sua. 

Mas até não termos isso no papel, e mudarmos o nome, vivemos uma ansiedade grande.”

Sancionada há seis meses, a lei que visava estabelecer prazos para as diferentes etapas da adoção tem esbarrado na falta de estrutura do Judiciário, de acordo com juízes e especialistas na área de infância ouvidos pela Folha.

Entre as medidas, está a previsão de 120 dias para que pretendentes sejam qualificados como aptos a entrar na fila de adoção e 90 dias, prorrogáveis, para a etapa de estágio de convivência —momento em que inicia o vínculo entre a criança e os pretendentes.

Os mesmos 120 dias, prorrogáveis por uma única vez, aliás, também passou a ser o prazo para a conclusão do processo de adoção, etapa em que os novos pais recebem a certidão de nascimento atualizada da criança.

Na prática, porém, juízes afirmam que falta estrutura e número suficiente de técnicos e juízes para dar conta desses prazos. “Não vejo como cumprir a lei sem fazer essa alteração na estrutura. É pouco funcionário para muita demanda”, diz Mônica Labuto, juíza da 3ª Vara da Infância, Juventude e Idoso do Rio.

Mesma avaliação tem Iberê de Castro Dias, juiz assessor da Corregedoria de Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo. “A lei estipula novos prazos, mas isso não reaparelha todas as varas de infância do estado”, afirma.

Entre os entraves, estão falta de varas específicas para a área de infância e de técnicos como assistentes sociais e psicólogos que possam fazer o acompanhamento dos casos.

“É indispensável que haja o relatório psicossocial, que mostra ao juiz se a adoção está sendo benéfica. Mas ainda temos um volume estrondoso de processos a serem distribuídos para que esse estudo seja realizado, alguns com mais de um ano”, afirma Walter Gomes de Sousa, supervisor de adoção da Vara de Infância e Juventude do DF.

Outra longa espera é para a habilitação. Só no DF há 220 processos que aguardam a convocação para participarem do grupo de preparação para a adoção, etapa anterior à aprovação para entrar na fila —alguns de março de 2017.

Questionados, tribunais do Rio e DF reconhecem o problema e dizem investir em mutirões para tentar acelerar a tramitação de processos. Mas dizem que não há, porém, previsão de contratação de novas equipes devido à crise econômica e ao contingenciamento no Orçamento dos estados.

Já o TJ-SP diz que aguarda a posse de 103 novos técnicos, entre psicólogos e assistentes sociais, até junho deste ano.

Atualmente, o Brasil ainda tem 8.763 crianças à espera por uma família. Na outra ponta, há 43.615 pretendentes cadastrados para adotar.

Na prática, porém, com a diferença entre o perfil desejado pelos adotantes e o perfil das crianças, nem sempre esses dois lados se encontram.


O QUE MUDOU COM NOVA LEI

Tempo máximo para adoção
Prazo para a conclusão do processo de adoção, com a sentença de um juiz, é de 120 dias (prorrogável pelo mesmo período). Antes, ainda que a pessoa já tivesse a guarda provisória, não havia prazo

Estágio de convivência
O período em que a criança convive com o interessado em adotar, com visitas ao abrigo ou passeios, deve ser de no máximo 90 dias (prorrogável pelo mesmo período). Antes não havia prazo

Estadia nos abrigos
Permanência da criança ou adolescente no abrigo deve ser reavaliada a cada três meses (antes eram seis) e não pode exceder 1 ano e 6 meses, salvo necessidade (antes eram 2 anos)

Prazo para ação
Após receber relatório de equipes técnicas sobre a situação da criança, Ministério Público tem 15 dias (antes eram 30) para entrar com ação de destituição do poder familiar, necessário para que criança seja encaminhada à adoção. O prazo só pode ser estendido se for preciso novo estudo sobre a criança

Adoção internacional
Quando uma criança é direcionada para adoção internacional, estágio de convivência no Brasil, anterior à adoção, é de 30 a 45 dias, prorrogável por igual período. Antes não havia prazo máximo

Apadrinhamento
A presença de padrinhos nos abrigos fica prevista em lei para todo o país, principalmente para crianças com menos chances de adoção. Antes, a iniciativa só ocorria em alguns estados, por projetos próprios


DESCOMPASSO

Enquanto aguarda a conclusão do processo, Raquel divide sua experiência com a adoção de E. em um grupo de apoio à adoção que coordena em Sacramento (MG).

A ideia de fundar o grupo surgiu após notar a curiosidade de conhecidos em torno da adoção do garoto —que chegou à família já com cinco anos. “Muitas pessoas diziam: ‘Nossa, mas você adotou um menino grande. Eu sempre quis adotar, como que é?’”

Para ela, o processo de encontro com E. acabou sendo mais rápido justamente porque, além de estarem na frente da fila, ela e o marido acabaram por mudar a idade inicialmente colocada como esperada no cadastro de adoção.

Com isso, acabaram com o descompasso que, segundo especialistas, é outro entrave à maioria dos processos.

Dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) mostram que, enquanto apenas 27% do total de crianças aptas a adoção têm até cinco anos, 78% dos pretendentes buscam adotar crianças desse perfil.

“O principal gargalo, quando se fala na demora, é pela escolha que o próprio adotante faz. Não há problema em querer adotar crianças até três anos. Mas não dá para reclamar da demora na fila”, afirma Iberê Dias, do TJ-SP.

A boa notícia é que, aos poucos, o perfil dos interessados em adotar tem mudado no país. Dados do conselho apontam que, nos últimos oito anos, a proporção de pretendentes que aceitava só crianças brancas, por exemplo, passou de 39% para 17%. Já o índice dos que são indiferentes a cor passou 29% para 47%.

A justificativa está na maior visibilidade do tema e no aumento de parcerias com grupos de apoio à adoção, que orientam os pretendentes.

]“Aos poucos, percebemos que o adotante tem ampliado o perfil”, diz Sara Vargas, presidente da Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção. “Quando entrei nessa área, praticamente não se fazia adoção nacional de crianças até sete anos. Agora, encontramos até dez anos”, afirma Mônica Labuto, do Rio.

Foi o que ocorreu com Eduardo Pires, 38. Inicialmente, ele e a mulher preencheram no cadastro que queriam adotar uma menina de até sete anos, já que já tinham outro filho, biológico, de oito.

Em seguida, após dois anos de espera, decidiram alterar a idade no cadastro para constarem como pretendentes a adotar uma criança de até oito anos, com um irmão.

Em contato com um grupo de apoio à adoção, acabaram por retirar pouco a pouco essas restrições. Nesta semana, eles completam a primeira de casa cheia: na última segunda-feira, receberam a guarda de cinco irmãos, de 5 a 11 anos, os quais conheceram por meio de grupos de busca ativa de pais para crianças com menor chance de adoção.

E como tem sido? “Está uma loucura. Comprei um carro maior e mudei meu horário de trabalho para poder ficar mais tempo com eles. Parece um desafio, mas quando vem aquele monte de gente junto e te chama de pai e mãe, é maravilhoso”, afirma.

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