No frio de SP, moradores de rua têm palavra final entre relento e albergue

Com estrutura limitada, prefeitura oferece kit aos que recusam os abrigos

Funcionária da Prefeitura de São Paulo entrega cobertor a morador de rua que se recusa a ir para um abrigo
Funcionária da Prefeitura de São Paulo entrega cobertor a morador de rua que se recusa a ir para um abrigo - Nelson Antoine/Folhapress

Na calçada em frente a uma loja de carros, um idoso dormia enrolado em um cobertor surrado. O amontoado de tecido cinza só sinalizava que servia de abrigo a uma pessoa porque dava para ver os pés descalços para fora.

Era tarde da noite de terça-feira (22), e os termômetros marcavam 13ºC. Foram os pés para fora que fizeram a equipe de abordagem de moradores de rua da Prefeitura de São Paulo parar a van na rua Voluntários da Pátria, em Santana, para tentar levar o idoso a um albergue municipal.

“Boa noite, senhor. Quer ir para um abrigo?”, perguntou a orientadora Wenia Diniz, sem ouvir nenhuma resposta. Foi preciso mais uma tentativa para o homem tirar a cabeça para fora e negar a abordagem.
“Não quero nada”, respondeu Antônio. Após fornecer apenas o primeiro nome, ele aceitou o cobertor oferecido pela equipe e voltou a dormir.

Enquanto cobriam o morador de rua, as orientadoras foram abordadas por uma garota de programa que fazia ponto na região. Ela avisou que outra pessoa próxima dali também dormia ao relento.

A poucos metros, na mesma calçada, o encanador Romildo de Jesus, 42, estava deitado com os braços encolhidos dentro do moletom e com a cabeça apoiada em uma mochila. Diferentemente de Antônio, ele aceitou de pronto o convite para passar a noite no CTA (Centro Temporário de Acolhimento) Santana.

Desde domingo (20), as madrugadas têm sido geladas na capital, e as abordagens de moradores de rua aumentaram. Em toda cidade, há 14 veículos que rodam todas as noites a partir das 22h com equipes para tentar convencer os moradores de rua a passar a noite em abrigos. Durante o dia, a frota é de 85 vans. 

Mas os assistentes sociais não podem obrigá-los a aceitar o acolhimento. Diante da recusa, eles registram os dados que conseguem obter da pessoa abordada, como nome, RG e filiação, em uma ficha que depois vai abastecer a base de dados da prefeitura. ​

Intervenção mais incisiva se dá apenas em casos extremos, quando a pessoa apresenta sintomas graves de saúde, como dificuldade para respirar e falta de consciência. As equipes então são orientadas a chamar a ambulância e aguardar a equipe de saúde no local para levar a pessoa até um hospital. Nesta semana, dois moradores de rua morreram em uma madrugada gelada. Uma suspeita é que possam ter morrido por hipotermia, mas a causa somente será confirmada após perícia.

Em dias assim, abuso de drogas e álcool para minimizar a sensação de frio e fome é recorrente entre quem dorme nas ruas —e representa um agravante. O entorpecimento torna a pessoa mais suscetível a complicações de saúde porque diminui a disposição a atender a necessidades básicas.

Este é o primeiro ano em que as equipes da prefeitura saem às ruas com cobertores, garrafas de água e lanches dentro das vans para oferecer aos que recusam a acolhida, em uma tentativa de minimizar o sofrimento causado pelo frio.

Na próxima semana, as madrugadas vão continuar geladas, com mínimas de 13ºC a 15ºC. Há previsão de nebulosidade, o que diminui ainda mais a sensação térmica.

“Só entregamos o cobertor quando a pessoa se nega mesmo [a ir para abrigo], senão eles veem que vão poder se aquecer minimamente e se dão por satisfeitos”, diz a orientadora Simone Freitas.

Ela explica que respeita um certo limite na insistência durante a abordagem para evitar reações agressivas.

A abordagem das equipes costuma ser rápida, já que a demanda de atendimento é muito maior do que as equipes são capazes de responder.

Nas quatro horas em que a Folha acompanhou a equipe, foi gasto mais tempo em deslocamentos do que nas abordagens diretas às pessoas.

Antônio e Romildo só foram abordados porque as orientadoras os viram na calçada, enquanto seguiam para atender chamado de uma mulher que estava com o filho em um abrigo sem estrutura para receber famílias. Mãe e filho, então, foram levados do Parque Edu Chaves, na zona norte, para outro abrigo, na zona leste.

Antes disso, outros 18 km foram percorridos pela equipe para levar ao abrigo Michele Pereira, 32, a primeira a ser abordada na noite de terça, no terminal rodoviário Tietê. Há oito meses morando na rua, ela aceitou o acolhimento porque está há duas semanas com o braço quebrado após ser agredida.

O frio que começava a apertar no início da noite, quando foi abordada pela prefeitura, a fez aceitar seu encaminhamento para outro bairro, Aricanduva, na zona leste, para dormir em uma cama.

Com apenas uma sacola nas mãos, ela mostrou uma jaqueta de couro branca que tinha ganhado de uma passageira do terminal, quando foi indagada pelas agentes como iria se proteger do frio naquela noite caso permanecesse ali.

Michele foi levada para o único abrigo feminino que dispunha de vaga para ela naquela noite —distante a uma hora de carro de onde estava. Além do braço engessado, ela andava apoiada em uma muleta, por isso não tinha condições de subir em um beliche, como é comum nos albergues. Era uma vaga mais específica.

Ao longo do percurso, Michele não disse uma palavra, mas dava para ouvir seu choro. “Estou morrendo de dor, fui ao médico, mas ele disse que ainda não era hora de tirar o gesso”, disse, antes de entrar na van com dificuldade e ser carregada para dentro pelas assistentes sociais.

Antes de abordar Michele, assim que chegaram ao terminal rodoviário, Simone e Wenia sentiram falta de um idoso que costuma dormir no local mas nunca aceita o convite para ir ao abrigo.

De longe, avistaram outro morador de rua habitual do terminal com a coberta que elas lhe ofereceram dias antes em um outro plantão.

Na noite de terça-feira, Simone e Wenia abordaram 37 pessoas na zona norte e conseguiram acolher 28. Em toda a cidade, foram 350 encaminhamentos para abrigos.

A Secretaria de Assistência Social da gestão Bruno Covas (PSDB) nega que a estrutura a moradores de rua seja insuficiente nas madrugadas.

“Se levarmos em consideração a quantidade de chamadas recebidas e atendidas, as equipes dão conta da demanda”, diz o secretário em exercício, José Antônio de Almeida Castro. Segundo ele, na noite de terça-feira, todos os chamados foram atendidos. “Nossa cidade é enorme, tem solicitações de diversas naturezas e picos de demanda que não duram a noite toda.”

Uma vez nas ruas, as equipes recebem chamados da central da prefeitura localizada na avenida Tiradentes, no centro. Atendentes concentram as chamadas feitas para a central 156 por munícipes que flagram moradores de rua ao relento em dias de baixas temperaturas. Muitas vezes, os próprios sem-teto ligam para a central para pedir acolhimento. Segundo o secretário em exercício, as ligações são atendidas em até 15 segundos.

Foi a funcionária do terminal rodoviário da Casa Verde, por exemplo, quem acionou o serviço ao ver que Marcelo Augusto da Silva, 24, sem ter onde dormir, passaria a noite em um dos bancos de concreto do terminal na noite fria.

A funcionária disse às assistentes sociais que ela decidiu ligar para a central porque Marcelo a abordou e lhe pediu uma cama para dormir.

“Fugi de casa porque meu padrasto bateu na minha cabeça com uma barra de ferro”, explicou Marcelo, já dentro da van, sobre o motivo de estar longe da família, que mora em São Miguel, na zona leste.

“Só quero uma cama quentinha e gostosa.” Marcelo dividiu o assento na van com o encanador Romildo, abordado no meio do caminho entre o terminal rodoviário na Casa Verde e o CTA Santana. “Onde é aqui?”, perguntou Marcelo, ao ser deixado na porta do CTA.

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