PMs saem ilesos em apenas 8% dos ataques de criminosos em SP

Mesmo armado, policial dificilmente não é ferido ou morto, mostra levantamento

Gedalva, 66, ao lado do filho Gilmar, 41, com a foto de seu outro filho, Osmar, PM morto em 2012 
Gedalva, 66, ao lado do filho Gilmar, 41, com a foto de seu outro filho, Osmar, PM morto em 2012  - Eduardo Anizelli/Folhapress
Rogério Pagnan
São Paulo

O soldado José Luís Alves, 43, entrava em um banco quando desconfiou de um homem que chegava apressado. Levou a mão à arma na cintura e ameaçou sacá-la, mas desistiu assim que percebeu o suspeito vestido de gari. Repreendeu-se intimamente por desconfiar de tudo (e de todos) e logo baixou a guarda.

O soldado José Luís Alves, 43, tem até hoje a cicatriz de um tiro que tomou no rosto durante roubo
O soldado José Luís Alves, 43, tem até hoje a cicatriz de um tiro que tomou no rosto durante roubo - Eduardo Anizelli/Folhapress

O tiro de revólver atingiu o lado esquerdo de seu rosto, pouco abaixo do olho, jogando-o ao solo. Olhando para seu próprio sangue escorrendo pelo concreto, notou o criminoso vestido de gari atirar mais uma vez na direção de sua nuca. Teve ali a certeza de sua morte e só lamentou a má sorte.

“Que lugar ruim para morrer. Uma segunda-feira, na porta de um banco e vindo pagar conta”, pensou o policial, conforme se lembraria dez anos depois do ataque sofrido em 26 de maio de 2008.

Por uma sorte difícil de explicar, José Luís não morreu, ganhou o apelido de “vaso ruim” e entrou para uma triste estatística de policiais militares atacados em São Paulo que, mesmo armados e treinados, acabam levando a pior em situações semelhantes.

Levantamento inédito feito pela Folha com base em relatórios sigilosos da PM de São Paulo mostra que, de cada dez ataques a policiais, em nove eles acabam feridos ou mortos. A maioria em roubos, envolvendo soldados.

Os dados mostram ainda que em cerca de 23% dos crimes, além de atacar o policial, os bandidos ainda levam a arma dele. E há episódios em que o PM é morto com a própria pistola, aquela que carregava para se proteger —isso ocorreu em 4% dos casos.

Esses números são resultado de análise feita pela Folha em 491 relatórios de PMs vítimas, documentos elaborados de 2006 a 2013 por equipes da Corregedoria da PM especializadas em investigar ataques desse tipo no estado.

Segundo os dados, desses 491 policiais com registro de violência, 218 foram mortos e 233 ficaram feridos —sendo ao menos 81 deles atingidos na cabeça por tiro ou paulada. No total, só 40 saíram ilesos, o equivalente a 8% do total.

Os documentos descrevem as circunstâncias em que os crimes se deram, as primeiras informações sobre o estado de saúde do policial militar e o destino do criminoso.

Essas apurações são abertas quando o PM é atacado e figura na condição de vítima, como em casos de roubos ou assassinatos, além de tentativas desses dois crimes.

Não entraria nessa lista, portanto, o recente caso da PM que baleou e matou um criminoso na porta da escola da filha, em Suzano, na Grande São Paulo, já que ela não era o alvo do crime e interveio ali de surpresa como policial.

Se a policial militar de Suzano não entrará nessa estatística, será diferente com um colega de farda dela cuja ação também foi filmada por câmeras um dia depois, em Guarujá, no litoral de São Paulo.

No domingo (13), ele matou um ladrão que, durante um assalto, passou a persegui-lo dentro de uma drogaria. O PM, nesse caso, era um alvo.

A cabo da PM que reagiu em Suzano, ao lado da filha e de outras crianças e famílias que participariam de evento do Dia das Mães, foi homenageada pelo governador de São Paulo, Márcio França (PSB).

O ato contrariou a estratégia da polícia de evitar a exaltação de ocorrências com mortes —especialistas temem que isso passe mensagem à tropa de incentivo à letalidade policial.

Parte dos relatórios da Corregedoria da PM analisados pela Folha foi redigida pelo sargento Maurício dos Santos, 49. Ele se aposentou no ano passado, após 28 anos de corporação, sendo 26 deles no setor de PMs vítimas, e participou de centenas de apurações de policiais atacados —inclusive de um colega que trabalhava nessa mesma equipe.

Maurício afirma que os resultados do levantamento refletem aquilo que ele presenciou ao longo dos anos. Por isso, ele passou a defender o desarmamento de policiais nos horários de folga. Para ele, essa medida reduziria a quantidade de mortes especialmente nos roubos. Nesses casos, o bandido geralmente já chega com arma em punho, não dá chance de o policial reagir e atira assim que encontra o armamento.

“Se for pego com a arma, vai morrer. O crime não perdoa”, afirma Maurício. Nessas quase três décadas, ele diz não se lembrar de nenhum caso de alguém que tenha sido poupado pelos criminosos após ser identificado como PM.

O coronel Marcelino Fernandes, comandante da corregedoria, onde trabalha há 24 anos, conta se recordar de apenas dois casos de policiais poupados por criminosos. Isso, porém, há muitos anos.

O cenário se agravou, para ele, depois do crescimento do crime organizado e a glamorização disso na sociedade. “Eles [bandidos] crescem na organização criminosa. Hoje, não escondem nem os sinais [atribuídos a quem mata policiais]. Querem [tatuagens de] palhaços desenhados, carpas, para mostrar aquilo que são no crime: matador de policial.”

Além da mudança do perfil dos criminosos, o oficial aponta a legislação brasileira como agravante do problema ao permitir, por exemplo, saídas temporárias da prisão de detentos sem condições de voltar às ruas. “O sangue desses PMs não está somente nas mãos dos criminosos, mas também nas mãos de muitos congressistas”, afirma Marcelino.

Entre os 218 mortos no levantamento feito pela Folha está o soldado Osmar Santos Ferreira, 31, assassinado a tiros em 22 junho de 2012. Um dos suspeitos de participar do crime era um rapaz de 23 anos foragido depois de conseguir autorização para passar o Dias dos Pais fora da prisão. Ele cumpria pena por roubo, tráfico de drogas e formação de quadrilha.

Ferreira morreu numa sexta-feira, véspera do aniversário do filho Gustavo, que completava cinco anos e tinha a festinha preparada. “É uma dor muito grande perder um filho assim”, diz Gedalva Maria dos Santos, 66, mãe do PM. “Eu sinto muita dó quando vejo, pela TV, outros pais e outras mães passando pelo que eu passei. É como se eu morresse todos os dias mais um pouquinho”, afirma.

O coronel Marcelino diz ainda que, para tentar reduzir o número de policiais mortos ou feridos, a PM realiza um trabalho de conscientização. Um dos motes é sugerir ao PM que ele seja o mais discreto possível no horário de folga (quando acontece a maioria dos ataques) —desde o uso de redes sociais até o modelo de moto adquirida. Em 20% dos ataques, o policial estava em moto.

Motos com menos cilindradas não atraem muito interesse de criminosos. “Precisa evitar principalmente a abordagem surpresa em que ele pode ser vítima”, afirma Marcelino.

Colaborou Júlia Barbon

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