Assassinato de jovens cresce, e país tem 325 mil vítimas em 11 anos

Homicídios na faixa etária de 15 a 29 anos aumentaram 23% desde 2006

Familiares e amigos acompanham o enterro de quatro dos cinco jovens que desapareceram e foram encontrados mortos em Mogi das Cruzes (SP) em 2016
Familiares e amigos acompanham o enterro de quatro dos cinco jovens que desapareceram e foram encontrados mortos em Mogi das Cruzes (SP) em 2016 - Bruno PolettiFolhapress
Fernanda Mena
São Paulo

​O número de homicídios de jovens de 15 a 29 anos no Brasil cresceu 23% de 2006 a 2016, quando atingiu o pico da série histórica, com 33.590 vítimas nesta faixa etária. No caso mais extremo, do Rio Grande do Norte, a quantidade de jovens mortos avançou 382% no período. Em outros oito estados, o incremento foi de mais de 100%.

Com isso, em 11 anos, o Brasil enterrou 324.967 jovens assassinados —quase sete vezes o número de soldados americanos mortos em ação (47.434) em 20 anos da Guerra do Vietnã (1955-1975).

Os dados constam do Atlas da Violência 2018, publicação do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O relatório aponta que o país bateu novo recorde de homicídios, com 62.517 mortes em 2016, o que se traduz em taxa também recorde de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes —30 vezes a taxa de homicídios da Europa.

Já a taxa de homicídios de pessoas de 15 a 29 anos (65,5 mortos por 100 mil habitantes) é o dobro da média nacional e mais de seis vezes a taxa global de homicídios de jovens (10,4), segundo a Organização Mundial da Saúde.

O incremento dessas estatísticas segue as desigualdades regionais brasileiras, e ao menos seis estados mantinham em 2016 índices de homicídios de jovens superiores a 100 casos por 100 mil habitantes: Sergipe (142,7), Rio Grande do Norte (125,6), Alagoas (122,4), Bahia (114,3), Pernambuco (105,4) e Amapá (101,4).

Consideradas apenas as mortes de jovens do sexo masculino, que representam 94% dos casos, a taxa média nacional sobe para 122,6 por 100 mil.

 

Além disso, enquanto o Acre viu esse índice aumentar 90%, houve redução acentuada da taxa em São Paulo (-14%) e nos estados do Espírito Santo (-13%) e da Paraíba (-14%) —ambos protagonistas das poucas políticas públicas de redução de homicídios de jovens.

“Estamos matando o futuro do país. E isso não é uma licença poética. Cada vez mais jovens são assassinados e em idades cada vez mais precoces”, afirma o economista Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea e um dos autores do Atlas 2018.

“Em 1980, o pico da morte de jovens se dava aos 25 anos. Agora, ocorre aos 21.”“Existe um massacre da juventude brasileira, principalmente nas regiões Nordeste e Norte. E, em ano eleitoral, temos de questionar: que política pública está sendo proposta para isso?”, afirma Renato Sérgio de Lima, diretor-executivo do fórum.

DESIGUALDADE E COR

No lugar deste debate propositivo, costumam emergir explicações simplistas para o fenômeno. Entre elas, duas são mais comuns. A que justifica as mortes a partir da premissa de que todos esses jovens estavam envolvidos com o crime. E aquela que atribui os elevados índices de assassinatos de jovens no Norte e Nordeste às características demográficas dessas regiões, onde o peso das pessoas nessas faixas etárias é maior do que no Sudeste ou Sul do país.

Em última instância, nesta lógica, a questão do sobrepeso dos jovens na pirâmide etária brasileira, chamada pelos estatísticos de bônus demográfico, também explicaria a violência extremada no país.

Segundo José Eustáquio Diniz, demógrafo e professor da Escola Nacional de Ciência Estatística do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), essas são ideias falsas ou incompletas.

“As pessoas não acordaram para o fato de que todo país rico aproveitou o período de bônus demográfico, que é passageiro mas no qual o Brasil se encontra, para aumentar sua riqueza e o bem-estar da sua população por meio do trabalho”, afirma.

De acordo com Diniz e Cerqueira, são condições indispensáveis para o desenvolvimento a oferta de educação de bom nível e oportunidades de trabalho e renda.

 

“O Brasil tem hoje 11 milhões de jovens chamados nem-nem: eles nem estudam nem trabalham. O desemprego na faixa dos 15 aos 29 anos é, em média, de 33%, mas é maior em vários estados. E essa falta de perspectiva econômica e de acesso a direitos faz com que a gente jogue fora o potencial produtivo dos jovens”, afirma Diniz.

Ele cita um estudo recente e ainda inédito feito por sua equipe nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife que encontrou uma forte correlação entre oferta de escola de qualidade e de emprego e violência. “Onde havia escola e emprego para o jovem, a violência era menor. Onde não existem essas oportunidades, a violência cresce.”

Segundo o demógrafo, mesmo que a onda populacional jovem passe, o quadro não deve se alterar de maneira significativa se a economia não oferecer oportunidades de renda e perspectiva de vida aos jovens brasileiros.

Cerqueira explica que, a partir de 2023, a proporção de jovens vai diminuir substancialmente no país, diminuindo também as chances de um salto de desenvolvimento. Além disso, ele já calculou que os custos diretos da violência brasileira, entre eles o da perda de vidas produtivas, consomem ao ano 2,4% do PIB, ou R$ 240 bilhões ao ano. 

 

Somados os custos dos aparatos de segurança e do sistema público de saúde, segundo o economista, chega-se a um custo de 5% do PIB. “É por isso que prevenir homicídios, além de possível, e é o melhor investimento que a gente pode fazer no Brasil, alocando recursos para lá na frente deixar de gastar enormemente com vidas perdidas, serviços de saúde e perda de produtividade.” 

A desigualdade racial também está espelhada no perfil dos homicídios relatados pelo Atlas. De 2006 a 2016, o número de negros alvos de homicídio aumentou 23%, enquanto o de não-negros caiu 6,8%.

 

Em 2016, a taxa de homicídio de pretos e pardos (40,2/100 mil) era duas vezes e meia maior que a de não negros (16/100 mil). Já a taxa de mortes violentas intencionais de mulheres negras era 71% mais alta que a de não-negras.

O relatório do Atlas da Violência 2018 destaca um caso emblemático no recorte racial da violência letal no Brasil: Alagoas tem a terceira maior taxa de homicídios de negros (69,7%) do país e a menor taxa de morte de não-negros (4,1%). 

É como se os não-negros alagoanos vivessem nos EUA, que em 2016 registrou taxa de 5,3 homicídios por 100 mil habitantes, enquanto os negros alagoanos morassem em El Salvador, cuja taxa bateu 60,1 mortos por 100 mil habitantes em 2017.

MULHERES E ESTUPRO

Pela primeira vez, o Atlas da Violência fez um estudo detalhado da violência sexual contra a mulher e aponta que, em cinco anos, o número de registros de estupro no sistema de saúde dobrou e que quase 51% dos casos ocorridos em 2016 tinham como vítimas meninas com menos de 13 anos de idade.

Enquanto em 30% desses casos, o agressor é amigo ou conhecido da criança, em outros 30% o agressor é um familiar próximo, como pai, padrasto, irmão ou mãe.

E, quando o agressor é alguém conhecido, a violência sexual ocorre dentro da própria casa da vítima em 78% dos casos.

“Os dados mostram uma sociedade doente, que naturaliza a violência pública e aquela que ocorre no ambiente privado”, diz Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Precisamos pensar em quais as estruturas necessárias para lidar com tais crimes.”

A avaliação de microdados dos registros junto ao Sistema Único de Saúde apontaram que, entre 2011 e 2016, houve uma diminuição dos casos em que o estupro era praticado apenas por um agressor (de 81% para 77,6%) e um aumento dos casos de estupros coletivos (de 13% para 15,4%).

Os estupros coletivos vitimaram mais meninas de menos de 13 anos (em 43,7% dos casos) e mulheres maiores de 18 anos (36,2%). E, em 12% dos episódios analisados, a vítima era uma pessoa com alguma deficiência —contra 10,3% do total de registros de violência sexual.

O Atlas aponta que, enquanto as polícias registraram 49.497 estupros em 2016, o Sistema Único de Saúde contou 22.918 crimes desta natureza. O documento estima que, por conta da notória subnotificação deste tipo de crime, a cifra brasileira real tenha girado entre 300 mil e 500 mil casos de estupro naquele ano.

 

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