Descrição de chapéu

Alegria e anarquia partiram, e a mestra da USP deixa uma legião de discípulos

Maria Lucia Montes não se encaixava nas divisões canônicas e convencionais

Lilia Schwarcz

Acaba de partir, sorrindo e montada num cabo de vassoura de bruxa, a pessoa mais inteligente, erudita, curiosa, divertida, teimosa e generosa que já passou por essa vida, e que atendia pelo nome de Maria Lucia Montes (27 de julho de 1942 a 4 de julho de 2018).

Cientista política e antropóloga de formação, Maria Lucia não se encaixava, porém, nas divisões mais canônicas e convencionais. Era um pouco de tudo, ao mesmo tempo. Quando uma vez lhe perguntaram a que religião pertencia, ela não titubeou: “todas”. E acrescentou: “eu acredito em eficácia simbólica, meu filho!”.

Foi assim que assumiu o candomblé, mas nunca deixou de dialogar, como todo brasileiro, com o catolicismo. Ela era uma Ekedi confirmada de Ossain, responsável pelos cuidados de Deus; uma guardiã de axé, mas que também se interessou pelo budismo e por todas as crenças que a colocassem em contato com o divino.

Maria Lucia era também louca por bichos; gatos em especial. Era capaz de fazer o táxi parar no meio da chuva para apanhar um bichano perdido na rua. Mas como tudo na vida da professora tinha história, ela costumava contar que o motivo para tal pendor tinha raízes históricas.

Ela, que nasceu em Petrópolis (RJ), acompanhava o pai em seu trabalho como instalador de redes de telefone, quando, na cidade de Campos, contraiu poliomielite. Muito nova, nunca mais andou livremente. 
Maria Lucia gostava de lembrar como durante a infância sentava-se numa bancada da praia do Flamengo e ficava vendo as crianças brincarem. Segundo ela, só os gatos chegavam perto dela. 

Lenda ou não, foi assim que virou uma defensora incansável dos animais, sobretudo dos gatos e cachorros que povoavam sua casa, às dezenas.

Maria Lucia fez da política uma forma de afeto. Muito forte em suas ideias e convicções, ela sempre preferia perder uma discussão, mas não o amigo. Foi assim que transformou sua vida pessoal e acadêmica num campo aberto de pesquisas e de atuação política cultural. Seus temas eram a cidade e a cultura popular, tendo trabalhado na segunda fase de implantação dos Pontos de Cultura e introduzido legiões de alunos (futuros professores e profissionais) nos CEUs (Centros de Educação Unificada) enviando-os para diferentes bairros de periferias de São Paulo.

Também fazia política cotidiana. Além dos animais, defendia os direitos dos cadeirantes. Diz a lenda (pois a vida de Maria Lucia era revestida de várias) que, no primeiro dia que utilizaram um elevador na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, ela foi convidada a inaugurá-lo. E não é que a máquina despencou levando a professora consigo?

Se o santo forte de Maria Lucia fez com que nada lhe acontecesse, em compensação, desenvolveu uma divertida teoria conspiratória alardeando que na faculdade estudávamos “a diferença”, mas não lidávamos com ela.

Maria Lucia teve importantes passagens no mundo dos museus. Aposentada na universidade, esteve nos bastidores de grandes exibições, como a “Mostra do Redescobrimento”, e passou a atuar na Pinacoteca e no Museu Afrobrasil na área de pesquisa. Nessas instituições ela podia exercitar o seu conhecimento sobre cultura brasileira e abrir horizontes teóricos combinados a convenções visuais.

Mas Maria Lucia foi, sobretudo, uma grande mestra. Não publicou muitos livros, apesar de ter deixado centenas de textos, alguns assinados por ela, outros não. O seu tempo ela usou para fazer uma legião de discípulos e colegas que aprenderam com ela a beleza do conhecimento, a importância de conviver com outras realidades, de reconhecer um Brasil mais plural e variado.

Professora carismática, ela era capaz de falar, por horas e com grande familiaridade, sobre temas que iam da Grécia Antiga ao último ato do governo brasileiro. Estava, porém, sempre atrasada, e encontrava todo tipo de explicação para justificar sua falta de pontualidade. Chegava na classe esbaforida, contando histórias terríveis, sendo a mais famosa aquela em que dizia ter topado com jacarés na marginal do Tietê!

No entanto, se chegava tarde, a aula não tinha hora para terminar. Muitas vezes, quando lecionava no período da tarde, comia o intervalo e esbarrava na aula da noite. Nessas ocasiões, se algum professor ou aluno interrompesse suas longas digressões eruditas, chamando a atenção para o horário, ela costumava vociferar e dizer que “éramos todos uns burgueses mimados”, amarrados a tempos artificiais. De fato, o tempo de Maria Lucia era outro. 

Famosa por suas expressões e gestos expansivos, balançava muito a cabeça, mexia nos cabelos e não perdia a ocasião de fazer moda: uma vez foi dar aula vestida de “Mapa Mundi” e explicou que se tratava de um manifesto contra a globalização.

Maria Lucia, que corria muito com um bólido que passou a usar —uma cadeira de rodas motorizada—, dizia que “não tinha tempo para morrer”. Infelizmente, atrasada que era, não teve tempo de reparar num câncer de pulmão que lentamente lhe tomava o órgão, e numa metástase no cérebro que começava a consumir e embaralhar sua visão e audição.

Quando deu por si, não havia mais tempo. No entanto, valente, jamais desistia. No Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, uma procissão de amigos a visitava diariamente, para a encontrar animada, debochando da falta de respiração e sempre pronta para uma boa conversa. Ganhou fama de “pessoa famosa” na portaria do hospital, e até os enfermeiros que a atendiam passaram a atrasar nos procedimentos diários.

Maria Lucia aprontou inclusive no seu enterro. Seis amigas levaram seu caixão, às 2h30 de uma madrugada fria, até o pomposo salão nobre da FFLCH. Era a última vez que a mestra tomava parte de um ritual naquele lugar aonde participara de centenas de bancas. No seu velório cantou-se muito. Toques de candomblé misturaram-se a músicas do repertório popular e lá estava ela, vestida para a festa, quase sorrindo.

Seu derradeiro ato foi atrasar o seu próprio enterro: o carro que a levava perdeu o caminho e chegou com meia hora de retardo. Mas ninguém reclamou: eram coisas de Maria Lucia. 

O último cântico daquele ritual de despedida, que começou de madrugada e só acabou às 16h30, deu o tom da saudade que hoje mora em todos nós: “como pode um peixe vivo viver fora da água fria ... como poderei viver, como poderei viver sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia (Maria Lucia)”.

PS: O Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo ​Octavio Frias de Oliveira) é dessas instituições públicas que fazem com que nós brasileiros acreditemos que esse país (ainda) tem futuro.

Lilia Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia da USP e global scholar na Universidade de Princeton (EUA)

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