STF retoma audiência sobre aborto, e CNBB acusa a corte de ativismo

Para padre, discussão é 'teatro armado' para legitimar processo

Brasília

A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) abriu nesta segunda-feira (6) o segundo dia da audiência pública realizada no STF (Supremo Tribunal Federal) para discutir a descriminalização do aborto acusando a corte de fazer do evento um “teatro armado” para legitimar o processo.

“Esta audiência presta-se apenas para legitimar o ativismo desta corte. Está-se fingindo ouvir as partes, mas, na realidade, está-se apenas legitimando o ativismo que virá em seguida. Esta audiência é parcial, a própria maneira como está sendo conduzida viola a Constituição”, disse o padre José Eduardo de Oliveira, da CNBB, afirmando que houve mais convidados pró-descriminalização do que contrários.

A audiência pública, iniciada na sexta (3), foi convocada pela ministra Rosa Weber no âmbito de uma ação ajuizada pelo PSOL que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez.  O evento é parte da fase de instrução do processo. Não há data para o julgamento final pelo plenário do STF.

Na sexta, a maioria dos expositores, formada por representantes de entidades médicas, foi a favor da descriminalização do aborto para a mulher que deseje fazê-lo e para as pessoas que a ajudarem. Nesta segunda, houve 13 falas a favor da mudança e 11 contra.

Para o padre Oliveira, o STF está usurpando a competência do Congresso ao pretender deliberar sobre o tema. Ele afirmou que é evidente que desde 1988, quando entrou em vigor a Constituição, nunca houve controvérsia sobre os artigos do Código Penal (de 1940) agora questionados.

O padre afirmou que a controvérsia foi artificialmente criada pelo STF em 2016, quando a Primeira Turma decidiu, ao analisar um pedido de habeas corpus, que aborto até o terceiro mês de gravidez não é crime. A decisão só valeu para um caso específico de funcionários de uma clínica de aborto de Duque de Caixas (RJ), mas foi vista como um precedente no sentido da descriminalização.

Na ocasião, votaram nesse sentido, formando maioria na Primeira Turma, os ministros Rosa Weber, Luís Roberto Barroso (que propôs a tese) e Edson Fachin. Ao final da fala do padre Oliveira, a ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, disse que queria registrar que o Poder Judiciário só delibera sobre um tema quando é provocado.

Dom Ricardo Hoerpers, que também falou pela CNBB, afirmou que a Constituição prevê a inviolabilidade da vida e defendeu que, com 12 semanas, um embrião já é um ser humano único. “Como este Supremo Tribunal Federal vai justificar a pena capital a um ser humano indefeso? Não cabe a nenhuma autoridade pública reconhecer o direito à vida a uns e não a outros”, disse.

Segundo dom Ricardo, se a questão é de saúde pública, é preciso aprimorar as políticas públicas para a saúde da mulher e a educação sexual, principalmente nas áreas mais pobres. Ele deu como exemplo de iniciativa positiva as casas pró-vida mantidas pela Igreja Católica em vários estados, que visam dar apoio às mães que decidem ter os filhos.

No mesmo sentido, o pastor Douglas Roberto de Almeida Baptista, da Convenção Geral das Assembleias de Deus, falou contra mudanças na interpretação da lei. 

“A Convenção Geral das Assembleias de Deus é contrária a esta matéria do aborto por resultar numa licença ao direito de matar seres humanos indefesos na sacralidade do útero materno, em qualquer fase da gestação, por ser um atentado contra o direito natural da vida. A palavra de Deus diz: ‘Não matarás um inocente’”, disse. 

Hoje o aborto só é permitido legalmente em três tipos de gravidez: decorrente de estupro, que cause risco à vida mulher e de feto anencéfalo.

A maioria da plateia nesta segunda-feira era composta por mulheres favoráveis à descriminalização do aborto. Parte usava atrás da orelha um galho de arruda, que, segundo elas, tem propriedades abortivas e, ao mesmo tempo, simboliza proteção.

Grupo de mulheres pró-aborto em protesto na frente do STF (Supremo Tribunal Federal) - Pedro Ladeira/Folhapress

Sob aplausos dessas mulheres, a pastora luterana Lusmarina Campos Garcia, que defendeu a descriminalização, fez uma leitura da Bíblia à luz do referencial teórico dos estudos de gênero. “As inquisições contra as mulheres continuam, embora travestidas de outras formas”, disse, sustentando que religiões são construções históricas sob predomínio, até hoje, do patriarcado eclesiástico.

“O único com poder de julgar é Deus, e Deus é amor incondicional. A capacidade de gerar uma vida nova é muito mais do que cumprir uma lei da natureza, da sociedade ou da religião. Precisa ser uma decisão refletida de homens e mulheres que possuem a capacidade de escolher ter filhos e filhas amadas e desejadas”, afirmou.

“O aborto não é uma escolha leviana de mulheres que decidiram não ser esse o tempo certo para gerar uma nova vida. É uma decisão difícil, desesperada muitas vezes. Não cabe a nós como sociedade, como Estado ou como gente de fé amontoar aflição sobre aflição, culpa sobre culpa, medo sobre medo, ao ameaçar com a prisão e com a categorização de assassina alguém que está em profunda situação de vulnerabilidade.”

Diferentemente dos cristãos, o rabino Michel Schlesinger, que representou a Confederação Israelita do Brasil, explicou que a tradição judaica entende que não há vida completa e autônoma durante a gestação, mas apenas a possibilidade de vida. 

Segundo Schlesinger, sua cultura entende que só a partir do nascimento não se pode mais escolher entre a vida da mãe e a do filho. Antes disso, durante a gestação, o aborto é possível se houver risco para a mãe (físico ou mental) e também em casos de gravidez na infância, de falta de condições socioeconômicas e de malformação do feto (para vários casos além da anencefalia). 

REAÇÃO DE ROSA 

Na parte da tarde, o representante da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, senador Magno Malta (PR-ES), também declarou, como fez a CNBB, que o tema é de competência do Legislativo. Ele disse que o povo, estarrecido com o ativismo judicial, “está sem confiança no Judiciário”. 

“O Congresso Nacional não está omisso para que essa situação viesse parar aqui. Esse papel não lhe é devido [ao STF], esse papel é do Parlamento. As duas Casas [Câmara e Senado] não estão omissas, elas estão debatendo”, disse Malta. Para ele, cada Poder “precisa conhecer seu lugar e seu papel”. 

Depois da exposição do senador, Rosa tomou a palavra para ler um trecho da Constituição que trata da legitimidade da corte para julgar processos como o que está em debate. 

“A Constituição, no seu artigo 102, parágrafo primeiro, é que diz com todas as letras: a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada por este tribunal na forma da lei”, enfatizou a ministra, num raro momento de demonstração de descontentamento.

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