Projetos pioneiros testam aluguel social em São Paulo e Porto Alegre

Famílias em prédio paulistano pagam 10% da renda e deixam a rua; plano gaúcho subsidia R$ 500 ao locador

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O prédio no centro de São Paulo restaurado pela prefeitura teve 34 apartamentos destinados a aluguel social para ex-moradores de rua já em fase de autonomia
O prédio no centro de São Paulo restaurado pela prefeitura teve 34 apartamentos destinados a aluguel social para ex-moradores de rua já em fase de autonomia - Adriano Vizoni/Folhapress
São Paulo

No último dia 31 de janeiro, quando Marcos Rezende completou 42 anos, ganhou o presente mais marcante dos últimos dez anos, desde que foi morar na rua: confirmaram que ele fora selecionado para morar em um apartamento alugado pela Prefeitura de São Paulo.

Pegou as chaves no último sábado (23). "Conheci o lixo e agora tô indo para o luxo", resume ele, que foi para a rua por vergonha da família depois que se viciou em drogas.

Hoje, livre da dependência, casado e empregado, deixará o abrigo onde mora e vai para um apartamento mobiliado, em que pode trancar a porta e estruturar sua vida –está terminando o ensino básico e quer estudar psicologia.

Iniciativas como essa, de oferecer moradia à população de rua em alternativa aos albergues, têm crescido no país. Porto Alegre lançou um programa parecido há um ano. Curitiba já iniciou um projeto piloto, enquanto Foz do Iguaçu e Brasília estão com projetos em fase de elaboração.

Em São Paulo, um prédio na Sé vai receber 71 pessoas de 34 famílias que até a última semana não tinham um CEP. Eles vão pagar um aluguel para a prefeitura de 10% a 15% de sua renda, condomínio de até R$ 40 e as contas de casa. Móveis e eletrodomésticos foram doados. 

A seleção de um número tão reduzido em um universo de mais de 20 mil pessoas que vivem nas ruas obedeceu a critérios de vulnerabilidade social e, principalmente, autonomia. "É uma porta de saída para as pessoas que estão retomando a sua organização social e reconquistando a sua autonomia", diz o secretário municipal de Assistência Social de São Paulo, José Castro.

Obrigatoriamente, os beneficiados têm que ter renda fixa (a menor é de R$ 755, e a maior, dois salários mínimos), já que a ideia é que arquem com uma parte dos gastos.

Há um contrato de aluguel comum que vale por quatro anos. Se deixarem de pagar por três meses podem ser despejados. Para evitar que a situação chegue a esse ponto, haverá um acompanhamento de assistência social e de saúde mais intenso no começo.

O prédio foi desapropriado pela prefeitura em 2011, por R$ 1,8 milhões, e passou por uma reforma de R$ 4,1 milhões (bancada pela prefeitura e pelo governo federal).A prefeitura promete lançar mais dez prédios com 470 apartamentos até o ano que vem.

Há três meses morando em uma casa alugada pela Prefeitura de Porto Alegre, Cleinton Rodrigues, 29, e Bruna Nascimento, 34, comemoram o fato de poderem tomar banhos diários e dormir sem medo. 

Bruna Nascimento e Cleinton Rodrigues têm aluguel social em Porto Alegre
Bruna Nascimento e Cleinton Rodrigues têm aluguel social em Porto Alegre - Leo Caobelli/Folhapress

O casal morava nas ruas desde a adolescência. Eles dizem que estão "limpos" do crack, mas "às vezes" abusam do álcool. "Fome na rua a gente não passou, mas não tinha dignidade, vivia com medo. Sonhava com um teto. Agora só falta o emprego", diz Rodrigues, que recolhe latas e papelão.

Lançado em maio passado, o programa de aluguel solidário de Porto Alegre (Moradia Primeiro) tem subsídio de R$ 1,8 milhão do governo federal no primeiro ano e, depois, deverá ser assumido pelo município.

A seleção dos moradores prioriza aqueles que têm um perfil de autonomia e de autocuidado adequado para ficar num imóvel por conta própria. Eles participam da escolha do local e são de fato os locatários (são quem assinam o contrato). O valor do aluguel, R$ 500, é repassado diretamente pela prefeitura ao locador –diferentemente do caso de São Paulo, a prefeitura não é dona do imóvel.

Mas o programa está emperrado. Por medo ou preconceito de que essa população possa danificar o imóvel ou mesmo receio de levar um calote da prefeitura, poucos proprietários se cadastraram.

A previsão era que 153 moradores de rua fossem beneficiados no primeiro ano. Mas até o fim desta semana, apenas oito estavam nas moradias subsidiadas. Outros 22 estão em processo de ingresso.

A estimativa da prefeitura é que existam 4.000 sem-teto na capital gaúcha, metade vivendo nessa condição há mais de quatro anos, 25% com problemas de dependência química, 45% sem vínculos familiares e 5% com problemas graves de saúde mental.

Em dezembro, uma campanha foi feita para sensibilizar os locadores, e a oferta subiu para 62 imóveis. "A campanha teve impacto, mas ainda é insuficiente para a demanda", afirma Silvia Machado de Mendonça, coordenadora do projeto.

O Moradia Primeiro (do inglês "housing first") é inspirado em experiências de países como Austrália, Canadá, EUA, Finlândia e Portugal. 

Nos Estados Unidos, por exemplo, desde 2009 esses projetos pilotados pelo governo federal tiraram 80 mil pessoas das ruas do país.

Estudos mostram que, em média, 40% do custo dessa intervenção são recuperados nos anos seguinte pela economia de gastos que os governos têm com emergências médicas, internações, clínicas de desintoxicação e prisões.

A curto prazo, também há economia. No Colorado (EUA), o governo local gasta US$ 34 dólares por dia em abrigos tradicionais contra US$ 29 em aluguéis solidários.

Segundo Giovanni Salun, coordenador da área de saúde mental de Porto Alegre, no município, embora não haja um cálculo exato do custo per capita do Moradia Primeiro (além do aluguel de R$ 500 teria que se somar toda a assistência médica,e psicossocial oferecida), a percepção é que o modelo seja mais econômico.

Hoje, o município gasta uma média de R$ 6.000 mensais por adulto mantido em abrigos públicos. Em São Paulo, segundo a prefeitura, a média é de R$ 700.

Para o economista Breno Gouvêa, coordenador do programa habitação do Projeto Ruas, no Rio de Janeiro, projetos como o de São Paulo e de Porto Alegre fogem de alguns princípios fundamentais do "housing first".

Em Porto Alegre, por exemplo, o prazo inicialmente previsto nos contratos de aluguel é de um ano. Em São Paulo, quatro anos renováveis. "Pressa, prazos não funcionam. Essas pessoas precisam de tempo para se reorganizarem, cada um a seu modo", afirma.

Segundo Giovanni Salun, é provável que isso mude. 

"De fato, as estratégias do 'housing first' não têm prazo, e devemos caminhar nessa direção. Mas ainda estamos aprendendo com a implementação do projeto-piloto."

O fato de os moradores de rua estarem agrupados num mesmo prédio em São Paulo pode gerar estigma, diz Gouvêa. "A dispersão geográfica, o anonimato, são fundamentais." A prefeitura diz que, pelo estágio avançado de autonomia, a integração com o ambiente é facilitada.

O Projeto Ruas começou a testar a metodologia do "housing first" no Rio de Janeiro com doações feitas por meio de vaquinhas virtuais. Até o momento, foram três beneficiados, mas só uma continua no imóvel alugado pelo projeto, há um ano e três meses.

"Ela está frequentando um processo de reabilitação química, está estudando, tem um emprego três vezes por semana, que ela conseguiu recentemente. O processo demora mesmo."

Segundo Gouvêa, o plano é continuar com esse piloto sem expandir para mais gente e, ao mesmo tempo, fornecer consultoria para o poder público.

Por que não expandir? "O modelo é feito para ser implementado pelo poder público, não por uma ONG. Os estudos mostram que os governos só tem a ganhar com ele", afirma

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