Debate sobre racismo religioso aumenta dentro de igrejas e opõe evangélicos

Excluídos de evento sobre tema, cristãos progressistas veem preconceito com religiões afrobrasileiras

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Rio de Janeiro

Dá para ser racista evocando o nome de Deus. Acontece direto em igrejas evangélicas, diz a educadora social Fabíola Oliveira.

O racismo religioso no Brasil, afirma, é a “capacidade de desqualificar o credo do outro desde que ele tenha ligação com a África”. Alguns espaços evangélicos são pródigos em esculhambar candomblé, umbanda e outras religiões afrobrasileiras, descritas como “coisa do diabo”. 

Fabíola, 35, é negra, fiel da Comunidade Batista de São Gonçalo (RJ) e conhece bem o candomblé: até 2015, era a sua religião. Mas não é por ter se convertido ao cristianismo que vai “passar pano” para o preconceito, afirma.

A educadora debateria o tema na semana passada no Despertar, jornada organizada pela Juventude Batista Brasileira na igreja  que a primeira-dama Michelle Bolsonaro frequenta, a Batista Atitude, na zona oeste carioca.

Fabíola Oliveira, que já foi do candomblé, e hoje segue uma igreja evangélica - Ricardo Borges/Folhapress

O desconvite a ela e ao pastor Marco Davi Oliveira, 53, para a mesa “Descolonizando o Olhar: o Racismo Atinge a Igreja?”, foi festejado nas fileiras batistas conservadoras. A denominação também tem como fieis dois filhos (Flávio e Eduardo) do presidente Jair Bolsonaro, além do procurador Deltan Dallagnol.

Em grupos de mensagens de pastores, circulou a lembrança de que Marco tem uma igreja cujo símbolo é o pandeiro, e a cerveja é liberada após o culto. Fica em um bar. “Tenho certeza que não é este o caminho esperado para nossos jovens”, diz o texto.

Já Fabíola é criticada por ser de uma igreja batista aberta à comunidade LGBTI+ e pedir que não se demonize quem acredita em religiões afrobrasileiras. A mensagem tem notas apocalípticas: “É tempo dos irmãos e irmãs conservadores [...] assumirem a liderança, do contrário, em bem pouco tempo teremos uma convenção liberal, se sobrar alguma coisa”. 

Procurada, a Convenção Batista Brasileira não quis comentar a alegação de que cedeu à pressão para desconvidar a dupla progressista.

Amnom Lopes, coordenador da ala jovem que organizou o evento, diz que tudo aconteceu por “motivos alheios” a ele. “Contra racismo só tem um lado mesmo. Se não é o lado que condena o racismo como prática pecaminosa, não tem outro.”

Pedro Luis Barreto Litwinczuk, o pastor Pedrão que celebrou o casamento de Eduardo Bolsonaro, contesta que evangélicos propaguem racismo. Embora a igreja batista brasileira tenha surgido com a vinda de pastores do sul escravocata dos EUA no século 19, o pastor do primeiro templo batista com DNA verde-amarelo era baiano e negro, diz Pedrão. 

Em 2019, “a questão com os debatedores foi o viés ideológico de esquerda deles”.

Fabíola discorda que o racismo seja apolítico e lembra que sua manifestação, às vezes, vai além da pregação. Como quando uma menina de 11 anos foi apedrejada ao sair de uma festa do candomblé no subúrbio do Rio, em 2015, por agressores que, segundo sua avó, erguiam a Bíblias.

No Rio, traficantes e milicianos evangélicos são investigados pela depredação desses locais de fé em comunidades. Em maio, o alvo foi Nando Zâmbia, filho da sacerdotisa de um terreiro em Alagoinhas (BA).

“Evangélicos criaram um culto na frente e o agrediram verbalmente.”

Fabíola Oliveira, evangélica, vê preconceito em sua igreja - Ricardo Borges/Folhapress

É difícil um líder proeminente aplaudir esses episódios, diz Fabíola. Mas é fácil vê-los nutrir o ranço contra credos afrobrasileiros.

Vide “Orixás, Guias e Caboclos: Deuses ou Demônios?”, best-seller do bispo Edir Macedo dos anos 1990 reeditado neste ano. O líder da Igreja Universal abre o livro dizendo que há tempos ora por aqueles ligados a “práticas de macumbaria e feitiçaria”. 

Não quer que a obra seja “meramente polêmica ou discriminatória”, diz. Deseja apenas que ela sirva de bússola a “navegantes errantes”. 

Por anos Fabíola deixou-se guiar por conselhos da mãe, uma ex-candomblecista que virou evangélica na velhice. A filha não deveria comentar com colegas que era “macumbeira”, ela dizia, entre pílulas de preconceito cotidiano.

“Se você briga com alguém e a pessoa fica gripada, dirão que a culpa é sua.” 

Segundo a educadora, crianças ouvem que doces de Cosme e Damião, típicos na umbanda, são do diabo, mas não há crítica se um pequeno evangélico escolhe o deus nórdico Thor, agora herói da Marvel, como tema de festa.

Xangô, orixá iorubá, lembra um bocado o colega setentrional: os dois são fortes e controlam trovões. Se a festinha fosse para o orixá, “imagina o auê”, diz Fabíola.

Claro que outras fés, como a católica, também encrencam com credos afrobrasileiros. O pastor Marco Davi, contudo, reconhece uma “tendência estranha” entre os seus para atacar esses blocos. 

Muitos evangélicos vieram de religiões africanas, “e parece que quanto mais aquilo faz lembrar quem você era, mais se demoniza”, diz. Além disso, evangélicos são ativos na conversão. Um umbandista não vai bater na porta para apresentar a palavra de Exu.

Se não pode falar do tema no Despertar batista, Marco o fez num simpósio na UERJ na semana passada. Ouviu o historiador Luiz Antonio Simas questionar por que não se considera terrorismo atentados a religiões afrobrasileiras, como se faz com sinagogas, mesquitas e igrejas.

Filho de uma quilombola candomblecista, o pastor frisa que intolerância não é monopólio evangélico e pede que ninguém generalize uma religião tão plural.

Ao saber de um terreiro vilipendiado por irmãos de fé, por exemplo, ele organizou uma vaquinha. “Em nome de Jesus o queimaram, em nome de Jesus reconstruiremos.”

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