Evento com igrejas e público LGBTIs critica 'comunidade de fé' que oprime a diversidade

Congresso aconteceu entre a Marcha para Jesus e Parada Gay, em São Paulo

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São Paulo

​Quem eles querem enganar? Muita gente que foi à Marcha para Jesus era para estar lá. "Não vem porque está no armário", diz Wellington Santos. 

E aí você já viu: muitos evangélicos que foram, três dias depois, à Parada LGBTI+ diziam que lá iam para evangelizar. "Vai naaaaada", ele continua, afinando a voz nesta última palavra. A plateia ri. 

Estamos numa paróquia anglicana, Wellington é pastor evangélico, e todos aqui defendem que é perfeitamente possível sair do armário sem deixar a igreja.

O 1º Congresso Igrejas e Comunidade LGBTI começou no 20 de junho, dia de Marcha para Jesus, e terminou com um "bloco de fé" no domingo da Parada LGBTI+, quando milhares lotaram a avenida Paulista para celebrar a diversidade sexual.

O evento aconteceu na paulistana Paróquia da Santíssima Trindade, onde símbolos cristãos (como a cruz) convivem com outros típicos da esquerda brasileira, como alusões ao MST (Movimento dos Sem Terra).

São religiosos de vários credos, do monge budista ao padre católico, todos progressistas. Entre eles, há muitos pastores que são minoria entre evangélicos, segmento que apoia em peso o presidente Jair Bolsonaro.

Daí a receptividade para falas como a da pastora transexual Alexya Salvador, que em outros ambientes evangélicos talvez fossem menos palatáveis: "Cada travesti, mulher trans, quando assassinada, ela só tá recebendo as mesmas chicotadas que Cristo recebeu. O cristianismo tem uma dívida enorme".

A bancada evangélica fez lobby para evitar que o Supremo Tribunal Federal criminalizasse a homofobia e a transfobia, o que acabou ocorrendo em maio. Contrariado pela corte, o bloco emitiu nota para criticar “o menosprezo à parcela heteroafetiva da sociedade”, que teria sua liberdade religiosa restringida. Alguns ministros do STF, segundo a bancada, “sugerem que as ideias contrárias à ideologia LGBTI não possam ser proferidas em praça pública, onde todos somos iguais no exercício da nossa cidadania”. Líderes evangélicos temem que possam ser processados se disserem que o casamento gay não é de Deus, por exemplo. ​

Com colarinho clerical e casaco nas cores do arco-íris, o reverendo Christiano Valério diz que é comum ouvir em igrejas cristãs que "Deus tem um plano para a sua vida". O que Ele estaria querendo dizer ao fiel homossexual nesses casos: "O plano de Deus é você ficar quietinho aí. Não tem problema ser gay, só não dê muita pinta. Você pode ser um peixe, mas não ouse nadar". 

Para Christiano, essa proposta não é verdadeiramente cristã: "Isso é deixar de existir: ficar dentro das denominações esperando que elas mudem… Para muita gente isso é morrer".

Mas há saída para quem não quer professar sua fé num lugar que vê sua homossexualidade ou transgeneridade como pecado, afirma. Ele é líder na Igreja da Comunidade Metropolina, que se define como protestante, ecumênica e inclusiva.

Christiano reconhece que falar aqui, onde todos pensam igual, "um lugar seguro", é fácil. Vai tentar pregar isso aos quatro ventos para ver o que é bom para a tosse.

Wellington, da alagoana Igreja Batista do Pinheiro, diz que evangélicos tradicionais não querem papo. "Há três anos não sou convidado nem para batizado de boneca."

Muitos fiéis compram a ideia de que um LGBTI+ pode contaminar todos ao redor, como o gay que vai roubar o marido da mulherada, ou o filho que vai virar "viadinho". 

Nessas horas, gosta de lembrar do que ouviu de uma senhorinha de sua igreja: "Se [um homossexual] der em cima do meu José, e José ceder, é porque é um viado 'véio'".

Essa fez rir, mas foram várias as histórias de terror compartilhadas na sexta (21), quando a Folha acompanhou o debate. Uma delas é contada pelo padre Paulo Sérgio Bezerra, da Paróquia Nossa Senhora do Carmo (zona leste de São Paulo): a do rapaz que o procurou em busca de orientação, pois todos à sua volta, da Igreja Católica à família, recriminavam sua homossexualidade. 

Matou-se no banheiro de um shopping. No bolso, um bilhetinho do padre com indicação de um psicólogo. 

Não dá para "passar pano" para algumas passagens bíblicas de fato homofóbicas, diz a trans Kasumi Takara, na plateia. Como esta: "Se um homem se deitar com outro homem como quem se deita com uma mulher, ambos praticarão um ato repugnante. Terão que ser executados, pois merecem a mor­te" (Levítico 20:13).

Por isso é importante pôr a Bíblia sob escrutínio histórico, diz o pastor Will Barros, da paulistana Igreja Betesda. Afinal, se for levá-la ao pé da letra, há um trecho que proíbe mulheres de liderarem um culto religioso. Os evangélicos, que têm seu quinhão de pastoras, estariam dispostos a isso? 

E o que dizer da recomendação em Levítico para não usar "roupas feitas com dois tipos de tecido"? Adeus, trajes de algodão com poliéster.

"Precisamos olhar a Bíblia não mais como um livro único de conduta, fé e prática. As narrativas podem ser muito produtivas para a vida humana, mas precisa ter um óculos, que é o do cristianismo. Se você não for cristão, vou usar outra expressão: os óculos do amor."

Will saca então uma ideia do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984): a comunidade LGBTI+ deve "não somente se defender, mas também se afirmar, e não somente como identidade, mas também como força criativa", inclusive nos espaços de fé.

Emenda, rindo: "Tenho impressão que Foucault estava tomado pelo Espírito Santo".

O congresso termina com uma carta aberta que critica as "muitas comunidades de fé, sobretudo entre as cristãs, que se tornaram espaços de silenciamento, opressão, humilhação, exclusão e abuso espiritual, psíquico, econômico e sexual".

Máximas como “Deus ama o pecador, mas odeia o pecado” e “macho e fêmea os criou”, segundo o documento, produzem "medo, vergonha, culpa e silenciamento".

Contribuem, diz o texto, para "relações familiares violentas, sofrimento psíquico e, no limite, muitos casos de depressão e suicídio entre pessoas lésbicas, gays, bissexuais, assexuais, travestis, transexuais, não binárias, intersexo, queer e de outras expressões de gênero, especialmente negras, pobres e de territórios vulnerabilizados".

Erramos: o texto foi alterado

A paróquia que sediou o 1º Congresso Igrejas e Comunidade ​LGBTI é anglicana, e não católica, como afirmava a reportagem. O texto foi corrigido.

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