Depoimento: detesto meus documentos e as interdições que carregam

Jornalista conta porque não retificou seu RG com seu nome social

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São Paulo

Há um gesto que evito: mostrar meu RG. Só faço quando mandam ou para gente muito querida.

No documento, alguém estranho, de olhar meio vago meio triste, e um cabelo escorrido sem graça; um nome longo que não me diz. E que também não diz nada para quem olha da 3x4 para mim, de mim para a 3x4.  

As reações não variam muito, são de espanto educado: “eita!”. Ocorre que foi uma longa travessia para me tornar eu com inteireza, o que implicou em enterrar a pessoa nos documentos: seu nome, sobrenome e corpo. 

Público durante a 23ª Parada do Orgulho LGBT, na avenida Paulista, em São Paulo
Público durante a 23ª Parada do Orgulho LGBT, na avenida Paulista, em São Paulo - Eduardo Anizelli - 23.jun.19/Folhapress

Quando terminei meu mestrado, em 2016, a universidade não permitiu que eu assinasse a dissertação com o nome (“social”). Expliquei, pedi, insisti. Mas não havia jeito e eu nunca vou entender, não de verdade, por quê.

A tristeza que senti com a interdição, com o fato de que na biblioteca de teses da USP meu trabalho não estaria e nunca estará registrado em meu nome, até hoje reverbera. 

Quando penso nisso, é como se meu peito batesse de sopetão em um prego. Sinto que alguém roubou meu trabalho. Aquela lá, a mesma pessoa que vejo no RG. 

Detesto meus documentos e todas as interdições que carregam. E foi um dia profundamente feliz quando conquistamos o direito de retificação. Finalmente não ter mais de dizer “nome social” e “nome de registro”, tudo poderia ser agora uma mesma coisa. O nome certo, o gênero respeitado. Tudo nos conformes. 

Mas prossegui sem retificar. Continuo com os documentos que detesto, vou levando. Se eu dissesse que tenho explicações puramente pragmáticas para isso, estaria mentindo. São reflexões que formulo aos poucos. É sem dúvida um passo que quero dar. O que me pega é “quando”. 

Sempre que me preparo para iniciar o processo, que decido que agora é a hora de enfrentar a maratona burocrática e cruzar feliz a linha de chegada, com lenço e documento, como vi tantos dos meus fazerem, algo acontece. 

Como Matheusa ser encontrada morta, com o corpo carbonizado. Ou a ministra dos direitos humanos pautar que “meninos vestem azul” e “meninas vestem rosa”. Ou quando leio no jornal a expressão “ideologia de gênero” (esse refrão vazio, fruto de pesadelo). 

E também leio que o Itamaraty deu ordens aos diplomatas para que digam e repitam que gênero e sexo biológico são a mesma coisa. Ora, não são, e a existência da comunidade T prova isso empiricamente (a filosofia e as ciências sociais, também). Mas trata-se justamente de atacar a nossa existência. A minha. 

E conheço os dados, acompanho o Mapa de Assassinatos da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais. Foram 163 pessoas trans violentamente assassinadas em 2018. Até maio do ano atual, 58. Sinto medo de morrer com o nome errado.

Paraliso. Não me orgulho disso. Hesito. Talvez a hora de retificar seja agora, pode não haver outra.

Esqueço o que aprendi na literatura: me falta coragem. Tenho o privilégio de conseguir me virar com os documentos velhos, penso. Aí estanco. Continuo minha travessia e quando percebo, estou mostrando o RG. Alguém diz “eita!”.

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