Polícia Civil vai investigar omissão de socorro em morte de entregador

Thiago de Jesus, do Rappi, morreu após esperar ambulância e ser recusado por Uber durante serviço

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São Paulo

A Polícia Civil de São Paulo abrirá inquérito para apurar se houve omissão de socorro ao entregador do Rappi Thiago de Jesus Dias, 33. 

O caso será tocado pelo braço da polícia que investiga crimes contra o consumidor. O delegado Antonio José Pereira apura se a atitude do motorista do Uber que se negou a levar Dias ao hospital contribuiu para a morte da vítima.

O entregador já estava deitado desacordado no banco de trás do veículo, mas o motorista cancelou a corrida ao perceber que o passageiro havia urinado nas roupas e exigiu que ele fosse retirado do carro para não sujá-lo, segundo relato de testemunhas.

"Vamos investigar até que ponto essa negativa do motorista repercutiu no agravamento do quadro de saúde da vítima", disse o delegado. 

Dias passou mal quando entregava uma garrafa de vinho em Perdizes (zona oeste) no final da noite do dia último 6. Foram os clientes que prestaram os primeiros socorros à vítima e acionaram o resgate. 

O entregador esperou pouco mais de 1h30 sobre a calçada do prédio para ser atendido. Foram acionados Corpo de Bombeiros, Polícia Militar e Samu, mas nenhum apareceu.

Dias só foi levado ao Hospital das Clínicas quando um amigo seu, avisado pelos clientes, chegou de carro. Morreu dia 8, após ter morte cerebral em decorrência de um AVC (acidente vascular cerebral).

O Procon-SP, órgão que defende o consumidor, é quem vai pedir nesta quarta (17) a abertura da investigação na polícia após tomar conhecimento do caso em reportagem publicada pela Folha.

 

Para Fernando Capez, diretor-executivo do Procon, órgão sob o guarda-chuva da gestão Doria (PSDB), houve negligência do motorista.

"O rapaz já estava deitado no banco traseiro do veículo. Foi firmado o contrato de transporte com o motorista, que tinha o dever de fazer a corrida e não cancelar só porque um dos passageiros estava passando mal", disse.

Capez disse que encaminhou ofício à Uber pedindo explicações sobre o caso e o desligamento do motorista do aplicativo. "A Uber deve responder pelos danos conveniados de seus motoristas em situações de dolo", afirmou.

 

A Rappi, segundo Capez, será procurada porque o caso de Thiago mostrou "aparente descaso da empresa com as normas administrativas de segurança do trabalho e contra a vida do trabalhador". Em nota, a Rappi disse que está mudando seus procedimentos para melhorar a vida de seus prestadores de serviço.

O transporte de passageiros por aplicativo foi regularizado na capital paulista em janeiro deste ano por decreto do prefeito Bruno Covas (PSDB).

A prefeitura disse que reclamações e solicitações sobre os condutores de veículos particulares que operam com aplicativos de transporte individual "devem ser feitos a cada uma das empresas credenciadas para operar o sistema".

Motoristas do Uber entrevistados pela Folha sob condição de anonimato disseram que não sabem atender passageiros com complicação de saúde durante o transporte.

Eles reclamaram que o aplicativo não tem cartilha com procedimentos a adotar quando um passageiro passa mal. E, por isso, agem no escuro analisando caso a caso.

A única diretriz disponível trata de vômito de passageiros no interior do carro: o motorista precisa recolher três orçamentos de limpeza para ser ressarcido pela empresa.

A Uber se posicionou na noite desta quarta-feira (17), após ter sido procurada pela reportagem da Folha há cinco dias.

A empresa disse, por meio de nota, que registra inúmeros casos de pessoas que utilizam os carros de motoristas parceiros para deslocamentos em hospitais e unidades de pronto atendimento.

“No entanto, é imprescindível esclarecer que a plataforma não substitui e nem deveria substituir os serviços de emergência. Casos dessa natureza demandam atendimento especializado, com veículos e profissionais com preparação adequada”, afirmou.

A Uber recomenda que quando um passageiro esteja passando mal, “é preciso acionar os canais de emergência apropriados, que têm o dever de prestar o socorro demandado de forma qualificada”.

No caso do entregador Thiago, diz a Uber, “todos os relatos divulgados até o momento apontam que os serviços de emergência já tinham sido acionados muito antes”.

A empresa disse ainda que seus motoristas não são profissionais de saúde capacitados a avaliar o estado das vítimas, não dominam os protocolos desse segmento, e os seus carros não são adaptados para substituírem ambulâncias.

A Uber afirmou que seus motoristas parceiros são independentes e autônomos. “Eles contratam o aplicativo para gerar renda e têm autonomia para decidir quando ficam online e, assim como os usuários, têm a prerrogativa de cancelar qualquer solicitação de viagem, desde que respeitados os Termos&Condições e o Código de Conduta do aplicativo”.

Segundo o Procon, a Uber acumulou 302 queixas de consumidores no primeiro semestre. No mesmo período do ano passado foram 49. Elas se referem a casos de cobrança indevida, cobrança de taxa indevida, vícios de qualidade e má prestação de serviço —como recusa e mau atendimento—, com 25 casos.

A Folha também questionou a 99 e a Cabify. Só a Cabify respondeu, dizendo que seus motoristas só podem cancelar corridas em três casos: se o passageiro não aparece após cinco minutos no local previsto; se sentem a segurança ameaçada; se o veículo apresenta defeito.

Ao cancelar a corrida, o motorista da Uber e o da 99 precisa explicar o motivo, que é avaliado por uma equipe de apoio da empresa. 

Quando o passageiro passa mal, diz a Cabify, o caso é analisado individualmente, mas a empresa admite não ter política para socorro, embora lembre que qualquer pessoa tem "dever de prestar assistência". "Orientamos que o motorista entre em contato para que as providências sejam tomadas".

Omissão de socorro é crime previsto no Código Penal Brasileiro, e quem o comete pode ser penalizado com até 1 ano de prisão, além de multa. Ocorre quando uma pessoa deixa de ajudar alguém que está visivelmente passando mal (desacordado, por exemplo) e não comunica autoridades.

Para Márcio Barandier, presidente da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados do Brasil, não é preciso ser ativo no resgate. "Nunca mexa na pessoa. Isso é função de médicos e bombeiros. Se você chama a ambulância, já está agindo corretamente."

Uma pessoa, à luz da lei, pode negar socorro quando a ajuda acarreta risco —tentar salvar alguém que se afoga no mar revolto, por exemplo. No caso dos apps de transporte, diz Barandier, o motorista deve comunicar as autoridades e buscar auxílio médico.

O Brasil não tem, contudo, mecanismo como a Lei do Bom Samaritano, que vigora em parte dos EUA e protege de ações judiciais quem presta assistência inicial a vítimas com risco de morte.

Saiba mais sobre omissão de socorro

O que é o crime de omissão de socorro? É quando alguém deixa de socorrer pessoas em situação de vulnerabilidade, com ferimentos, ou em perigo. A lei também prevê que comete o crime quem, verificando a situação de socorro, deixa de informá-la às autoridades

Uma pessoa pode se negar a prestar socorro? Sim, em casos em que o atendimento à vítima representa um risco à pessoa que vai prestar assistência, por exemplo, num afogamento em mar revolto

É preciso ter sempre uma postura ativa numa situação de resgate? Não. Quando você chama uma ambulância, por exemplo, já está prestando socorro à vítima. Nunca mexa na pessoa que corre risco de morrer

Sou motorista de aplicativo, e uma pessoa passa mal no meu carro durante a corrida. O que devo fazer? O ideal é comunicar as autoridades competentes pelo resgate (Samu e bombeiros, por exemplo). Se possível, leve a pessoa para o hospital e comunique a empresa a qual é vinculado

E se a pessoa morrer no meu carro? Leve o passageiro ao hospital. Depois, comunique imediatamente a polícia e, se possível, os familiares da vítima. Esteja à disposição da Justiça para todos os esclarecimentos

Qual é a pena para quem omite socorro? A punição prevista é de detenção de um a seis meses, além de multa. No caso de a omissão resultar em lesão grave, a pena será duplicada e, caso resulte em morte, triplicada

Fontes: TJDF e Márcio Barandier (IAB)

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