Investigação secreta da PM paulista mudou destino de jovens presos injustamente

'Caso Bodega', ocorrido há 23 anos, é conhecido como um dos grandes erros de investigação da polícia paulista

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São Paulo

Os primeiros 45 minutos do jogo entre São Paulo e Santos naquele domingo, 25 de agosto de 1996, foram tão chatos que a única alegria do santista Eduardo Araújo da Silva veio no intervalo da partida com uma notícia veiculada pela equipe de jornalismo da Jovem Pan: policiais civis haviam prendido os suspeitos da morte do dentista José Renato Tahan, 25, e da estudante de odontologia Adriana Ciola, 23, baleados durante o roubo ao Bodega, famoso bar de Moema (zona sul).

Não poderia imaginar Silva, promotor de Justiça de São Paulo, que seria ele o responsável pela reviravolta do caso, ao descobrir a inocência daquelas pessoas presas (e torturadas para confessarem o crime) e a identidade dos verdadeiros culpados.

Polícia apresenta à imprensa os cinco suspeitos de matar dois clientes do bar Bodega em 1996, depois inocentados - Lalo de Almeida - 27.ago.96/Folhapress

As memórias desse crime, conhecido como Caso Bodega, voltam à tona agora, dadas as semelhanças com a série da Netflix "Olhos que Condenam", que conta a história dos cinco adolescentes negros do Harlem que são condenados por um crime que não cometeram. Mesmo inocentes, eles acabaram confessando um ataque a uma mulher branca após serem torturados, física e psicológica. Ficaram presos de 6 a 14 anos, conforme o caso.

O destino dos jovens brasileiros só não foi o mesmo em razão do trabalho de Silva. Vinte e três anos depois, o promotor revela à Folha a origem das desconfianças de que havia uma injustiça em curso: uma investigação secreta de PMs, provocada pelo inconformismo de um anônimo chamado Vivaldo.

Vivaldo Olímpio da Costa, então com 23 anos, era o principal segurança do Bodega. Foi o primeiro a ser rendido pelos criminosos, na entrada do bar, e quem tentou fazer com que os clientes e funcionários ficassem calmos para evitar uma tragédia. "Praticamente fui eu quem anunciou o assalto", brinca.

Tinha conseguido contornar o pânico até mesmo diante do disparo acidental de um criminoso, que feriu o braço de Milton Bertoline Neto. Mas as coisas saíram do controle quando o dentista Tahan entrou no bar em meio ao roubo, desentendeu-se com um ladrão e acabou baleado. Na fuga, um deles atirou contra a janela, acertando Adriana.

Nos dias seguintes, Vivaldo tentou ajudar a polícia na identificação dos culpados. Tinha visto três deles e se propôs a ir a distritos policiais para fazer reconhecimentos. As relações cordiais mudaram quando o segurança contrariou o desejo dos policiais de confirmar a identidade de um trio.

“Eu, ingenuamente, achando que estavam investigando mesmo, chamei o investigador e disse: ‘Olha, não são esses caras aí, não. Aquele ali eu até conheço [era ex-vizinho]’. Ainda disse: ‘Esses garotos são negros, e ninguém disse que tinha negro no assalto'”, lembra.

A resposta surpreendeu o segurança. “Eles eram mais claros? Mas podem ter tomado sol, não é mesmo?”

Mais surpreso ficou com os desdobramentos vindos a seguir: da condição de colaborador, o segurança passou a ser considerado suspeito e a sofrer ameaças de prisão preventiva. Recebeu conselhos para que confessasse participação no roubo e uma "pranchetada" na cabeça, que quebrou a madeira. 

Assistiu, também, ao tratamento dado pela polícia a outros suspeitos. “Quando eu entrei na sala, eles estavam agredindo o tal ex-vizinho, o Natal [Francisco Bento dos Santos], nem sei se está vivo ainda. A delegada batia nele e falava: ‘Você deu o maior trabalho para gente te prender, fez o maior carnaval. Seu nome é Natal ou Carnaval? Batia nele e perguntava. ‘Seu nome é Natal ou Carnaval?”, relembra Vivaldo.

 
O ex-segurança do Bodega, Vivaldo Olímpio da Costa - Eduardo Anizelli/Folhapress

O segurança já estava solto quando os suspeitos foram apresentados à imprensa no dia 26. Além de Natal, foram apresentados Valmir da Silva, Luciano Francisco Jorge, Valmir Vieira Martins e Cleverson Almeida de Sá, menor de idade (colocado de costas).

“Me deu uma angústia, uma revolta. Pensei: não pode ficar assim”, diz Vivaldo, que ligou, então, para um grande amigo: o soldado da PM Ismael do Nascimento Santos, então com 28 anos, integrante do Tático Móvel de um batalhão na região central de São Paulo.

“O Vivaldo me disse que as pessoas que estavam presas não eram aquelas que participaram do assalto. Ele tinha convicção daquilo. Como sabia que Vivaldo era uma pessoa do bem, conhecia havia muito tempo, levei-o ao quartel”, contou o PM à Folha.

Na sede do batalhão, Vivaldo repetiu a outros policiais o que havia ocorrido. Entre eles estava o comandante da unidade e o sargento Everaldo Borges de Souza, integrante da equipe de P2, o serviço reservado da PM, que iniciou um levantamentos sigiloso de informações.

Não demorou para que os PMs, em missão secreta, obtivessem informações importantes. Descobriram que um grupo suspeito no Glicério, região central, estava se comportando de maneira estranha desde o assalto ao Bodega. Parte do bando havia deixado a capital, um deles teria vendido carro e outro, descolorido o cabelo.

A certeza de que os verdadeiros criminosos do bar Bodega estavam soltos surgiu quase por acidente. Vivaldo e Ismael estavam na porta de uma casa de shows, na Bela Vista, quando viram passar o rapaz de cabelos descoloridos. “É esse daí”, disse o segurança.

Todas as suspeitas recolhidas foram levadas ao comando da PM que, por sua vez, comunicou o Ministério Público Estadual, comandado à época pelo procurador Luiz Antonio Guimarães Marrey. Ele designou o santista Silva para assumir a investigação.

“Foi uma surpresa, porque, até então, o que estava sendo veiculado era a versão do delegado, que dizia estar tudo certo, que os reconhecimentos eram válidos”, diz Silva. “Acabei fazendo uma investigação paralela, junto com o P2, junto com os empregados. Para evitar conflito com a polícia [Civil], mantive o sigilo dessas investigações.”

Além de Vivaldo, Silva falou com outros funcionários do bar, vítimas do roubo e familiares dos rapazes presos que, segundo ele, estavam temerosos. “Só aceitaram a falar comigo se eu não levasse o fato à Polícia Civil, porque estavam com medo, estavam desconfiados.”

 
O procurador Eduardo Araújo da Silva, responsável pela soltura dos inocentes do caso Bodega - Bruno Santos/Folhapress

Praticamente todas as vítimas e funcionários ouvidos, com exceção de uma testemunha, não reconheceram os primeiros rapazes presos. Além de negros, eram jovens, ao contrário dos culpados. “Não é que eles tinham dúvidas. Eles falavam: não são esses que estão presos.”

O relatório final do inquérito foi enviado à Justiça, apontando os primeiros suspeitos como possíveis culpados. Mas o promotor não só recusou aquela conclusão, como pediu para soltá-los. Também solicitou o envio das investigações ao DHPP (departamento de homicídios). "Eu tive meus méritos, mas não foi uma inspiração. Não foi um tiro no escuro. Eu tinha base para pedir a soltura."

A decisão causou uma chuva de críticas contra o promotor, inclusive por parte de colegas da Promotoria, porque não podia à época expor detalhes, principalmente os funcionários e as vítimas. "Fui massacrado. Recebi críticas até do Conselho Superior do Ministério Público. Disseram que minha conduta poderia estar manchando a imagem da instituição, porque os suspeitos tinham confessado ao Fantástico [TV Globo], programa de muita audiência na TV”, disse.

O DHPP assumiu o caso e fez, segundo Silva, “uma investigação técnica e séria". "Em uma semana, tudo estava esclarecido."

Os culpados pelo crime foram presos nos dias seguintes e confessaram. A polícia encontrou com parte do grupo objetos levados das vítimas do roubo e também parte do dinheiro. Durante a prisão do chefe do bando, Sebastião Alves Vital, o Basto, um investigador foi ferido em uma troca de tiros e morreu.

A lista tinha ainda, além de Vital, Sandro Márcio Olímpio, Silvanildo Oliveira da Silva, Zeli Salete Vasco, e Francisco Ferreira de Souza. Todos foram julgados e condenados a penas entre 30 e 48 anos de prisão.

Procurados por meio da Secretaria da Segurança Púbica, os delegados responsáveis pela investigação não quiseram ser manifestar. Todos, à época, negaram o uso de violência para obtenção dos relatos dos jovens inocentes.

Sobre o caso, a pasta informou: “A Corregedoria da Polícia Civil também instaurou inquérito para apurar a conduta dos policiais, cuja denúncia foi rejeitada pelo Judiciário, em abril de 1998, sendo determinado o arquivamento dos autos. O processo administrativo instaurado pela Corregedoria foi concluído em 2002 e arquivado.” Resumindo: ninguém foi punido.

Vítimas fatais

José Renato Tahan, 25
dentista

Adriana Ciola, 23
estudante de odontologia

Ferido

Milton Bertoline Neto

Cronologia

26.ago.96

  • A Polícia Civil apresenta à imprensa cinco suspeitos de participação no crime; outros quatro foram apontados como suspeitos posteriormente
  • Parte dos suspeitos confessou envolvimento no latrocínio, inclusive para jornalistas

Suspeitos apresentados

  1. Valmir da Silva
  2. Luciano Francisco Jorge
  3. Valmir Vieira Martins
  4. Cleverson Almeida de Sá (costas)
  5. Natal Francisco Bento dos Santos
  • Quase nenhum funcionário ou vítima do crime reconhece os suspeitos apresentados

24.out.96
O promotor Eduardo Araújo da Silva discorda do relatório final das investigações; pede soltura dos suspeitos e a transferência do inquérito para o DHPP (homicídios)

Silva também aponta a tortura como possível causa da confissão do grupo: “Não se brinca com a liberdade das pessoas”, diz promotor à Folha, ao comentar decisão

2.dez.96
Policiais do DHPP, investigação liderada pelo delegado Wagner Giudice, esclarecem o crime e prendem os criminosos

Todos os novos suspeitos presos confessaram o crime. Polícia também localizou objetos roubados de clientes do Bodega e parte do dinheiro levado. Funcionários do bar reconheceram o grupo

17.dez.96
Ministério Público denuncia os cinco suspeitos

Denunciados

  1. Sebastião Alves Vital
  2. Sandro Márcio Olímpio, o Gaguinho
  3. Silvanildo Oliveira da Silva, o Nildinho
  4. Zeli Salete Vasco, a Gaúcha
  5. Francisco Ferreira de Souza, o Chuim

abr.98

  • Corregedoria conclui investigação contra os policiais suspeitos de participarem de agressões e ameaças
  • Justiça rejeita a denúncia, alegando não ter havido testemunhas dos supostos atos praticados pelos policiais

2002
Corregedoria arquiva processo administrativo contra os policiais

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