Academia continua a construir as bases do racismo, diz reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares

Advogado e sociólogo, José Vicente relata que ascensão traz solidão social ao negro no Brasil

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São Paulo

A inércia da academia brasileira em produzir conhecimento para combater a discriminação racial acaba por perpetuá-la, afirma o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente.

Por isso, ele agiu.

Dos 1.400 alunos da instituição que fundou em 2004 em São Paulo, mais de 1.100 são negros, assim como este ex-boia-fria que se tornou advogado e sociólogo, doutorou-se em educação e virou reitor. Metade dos 110 docentes, também.

Vicente, que nasceu no Morro do Querosene, em Marília (SP), há 60 anos, começou a trabalhar na infância e indignou-se cedo com as frequentes cenas de violência policial em sua vizinhança. Especializou-se em direito e educação para tentar reparar injustiças em um país onde o racismo, a seu ver, continua a ser a grande questão. 

Uma dessas injustiças são os obstáculos à entrada de alunos negros no ensino superior. Apenas em 2018 os pretos e pardos que perfazem 55,8% da população brasileira se tornaram, segundo o IBGE, maioria nas faculdades federais, sendo 50,3% dos alunos destas. Nas particulares, ainda são 43,2% do corpo discente. 

Em dez anos, a faculdade que ele fundou e que cobra mensalidade média de R$ 350 formou cerca de 2.200 alunos em oito cursos, em parte mantidos por doações: administração, direito, publicidade, pedagogia, tecnologia de transportes terrestres, logística, recursos humanos e segurança privada. A maioria dos egressos é de mulheres negras. 

Para o negro que sobe, no entanto, ele relata que resta a solidão social.

O sr. diz que só se descobriu negro ao sofrer racismo no curso de direito.

Nunca percebi restrição até que, na faculdade de direito, em Guarulhos, montamos uma chapa para o diretório acadêmico na qual eu seria o vice-presidente, e houve uma série de reações à possibilidade de ter um negro no cargo. Fiquei muito chateado porque eu era conversador, me relacionava bem com as pessoas, achava que isso evitaria coisas dessa natureza.

Homem negro de terno claro e mãos no bolso posa de perfil diante de mural com os dizeres "Yes We Can" e imagens de protagonistas negros
O reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente, posa diante de mural na sede da faculdade, no Bom Retiro, São Paulo, com o slogan de campanha de Barack Obama, "sim, nós podemos" - Zanone Fraissat/Folhapress

Como foi a criação da Faculdade Zumbi dos Palmares?

Criamos a Afrobras [Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural] para negociar bolsas de estudo para jovens negros em instituições privadas. Era 2001, momento de discussão intensa para a Conferência Mundial de Racismo em Durban, na África do Sul, onde sugerimos um ambiente de ensino superior que tratasse das questões do negro, da recuperação da história da população negra no país. 

Apanhamos, mas, no final, convencemos o ministro da Educação [Paulo Renato de Souza, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso], que dizia que a Constituição não permitia criar uma universidade para negros, de que um trabalho assim seria muito relevante para sairmos do imobilismo. 

Trouxemos para o Brasil o modelo dos EUA, onde há cerca de 150 universidades negras —onde os negros estão em proporção muito maior. Queríamos uma instituição em que a nossa história, cultura, trajetória e memória pudessem ser cultuadas. Em que fosse ensinada a negros e brancos a tolerância, até por causa das injustiças e borrachadas que nós tomamos quando criança.

Muitas pessoas afirmam que uma universidade para negros e as cotas raciais podem reforçar o racismo.

Essas pessoas estão erradas. O racismo é um muro de contenção que não permite que o negro saia do lugar. Se abrimos um caminho nesse muro para permitir que esse pessoal respire, é um ato de salvação, não de discriminação. 

Se não fossem as cotas, estaríamos ainda no país das trevas do ponto de vista do tratamento igualitário para os negros. Só melhoramos um pouquinho porque nós introduzimos as cotas

Ao mesmo tempo, um milhão de jovens negros em universidades é uma revolução cultural, política e educacional. É um salto civilizatório. ​As cotas exigiram que os ambientes se estruturassem e se adequassem para trabalhar com o tema. Provocaram um despertar cívico.

Quais as conquistas da faculdade e o que ainda falta?

Imagine se eu lá do meio do mato de Marília, como boia-fria, pensaria em estar na cadeira de fundador da faculdade que eu sonhei e ainda dando uma entrevista sobre ela. A transformação foi brutal. 

Agora precisamos expandir [as conquistas] para outros ambientes e setores e precisamos de tempo de consolidação. Estamos nas periferias, nos morros, nas prisões, sem emprego e sem educação. Para [corrigir] isso, que haja ação afirmativa. 

Há poucos negros nos quadros das grandes empresas, e menos ainda em cargos de liderança o Instituto Ethos aponta que mulheres negras ocupam 0,4% das posições de chefia. Qual é a barreira?

O geógrafo Milton Santos dizia que o problema do negro não é o racismo, mas o telefone, porque a relação social que se dá no Brasil para a distribuição dos postos de privilégios se dá em cima de grupos de interesses da elite, que só se relacionam entre eles. Se a pessoa não cumpre os fundamentos da estética e do padrão, ela não participa da relação.

Para se manter, esse grupo constrói uma barreira de proteção e justificação que o indivíduo não consegue transpor. Como se explica que nas 5.000 maiores empresas que dizem que praticam responsabilidade social não tem um presidente negro? Em qualquer lugar isso é apartheid racial. Aqui a gente fala que é falta de oportunidade, que os negros não têm educação adequada, que não tem ambição. 

O sr. já disse que vivemos em um apartheid pior do que o que houve na África do Sul…

Lá se sabia quem era o seu inimigo. No Brasil não sabemos, porque todo mundo te abraça e dá beijinho. Mas, na hora em que chega na empresa, não te contrata. Se você senta perto no restaurante, se afasta. 

Em um país onde 56% são negros, você está falando com o único reitor negro. Quando chego em um hotel para um evento, a primeira coisa que o cara fala é: “para pegar a chefia é lá na frente”. Ele não compreende que um negro de carro possa estar lá para outra coisa que não "buscar a chefia". Quando preciso fazer interação social, não me convidam. 

O racismo produz aqui a solidão social. E se você acha que com dinheiro resolve o problema, não resolve. Fica pior, pois os ambientes que você tem que frequentar são os que têm a coisa mais escancarada e padronizada. 

Como a Zumbi dos Palmares trabalha a autoestima dos seus alunos diante dessa realidade?

Todas as nossas salas de aula têm um patrono negro: tem a sala [Nelson] Mandela, sala Michele Obama, Barack Obama, Rebouças, Teodoro Sampaio, Alcione... há toda uma formatação estética para que as pessoas saibam quem foram [essas personalidades]. Nossas paredes trazem artigos e fotos. Fazemos o Troféu Raça Negra

Mas talvez a maior contribuição para a autoestima [dos alunos] seja a nossa própria existência. Imagine essas meninas e meninos chegando aqui e vendo jovens negros andando para cima e para baixo. Só o estar presente já é um espelho e uma referência fantástica. 

Quais os cinco personagens negros que não podem deixar de ser ensinados nas escolas do Brasil?

Nelson Mandela [líder do movimento contra o apartheid e depois presidente da África do Sul], Martin Luther King [pastor e líder ativista americano], Agostinho Neto [líder do movimento anticolonial e depois presidente em Angola], [o líder quilombola brasileiro] Zumbi dos Palmares e Luísa Mahin [ex-escrava e líder antiescravagista na Bahia]. Incluiria também a [ex-senadora e ex-ministra] Benedita da Silva. E [a escritora] Carolina Maria de Jesus. 

No livro “Memórias da Plantação - Episódios de Racismo Cotidiano”, Grada Kilomba afirma que o mundo acadêmico é um espaço branco em que o privilégio de fala tem sido negado às pessoas negras. O sr. concorda? Como superar isso?

Não só a possibilidade de fala, mas a de interação e intervenção. Em grande medida, o ambiente acadêmico continua construindo as bases desse racismo limitativo, na medida em que se eles [a academia] não agem, se omitem.

O racismo continua sendo a grande questão nacional, e o único lugar que pode produzir conhecimento e tecnologia para combate-lo, o ambiente do conhecimento, se nega a fazer isso. A academia continua construindo as mentalidades de grupos de interesses estruturados em cima dessa dicotomia e a reforçando, na medida em que nem combate e nem produz debate sobre isso.

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