Famílias trocam rixas políticas por ausências na noite de Natal

Há quem consiga se equilibrar, engolir provocações, convicções e cruzar o abismo político instalado nas festas de família, diz psicanalista

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São Paulo

A paz na Terra aos homens de boa vontade —e, neste caso, de esquerda— virá em uma “ceia sem bolsominions”, como diz o anúncio do Boteco Socialista, no Butantã, na zona oeste de São Paulo.

Lá, a educadora Karla Roberta Brandão de Oliveira, 45, passará o Natal longe de discussões com familiares, pelo segundo ano seguido. 

“Entendi que é uma data muito simbólica, e entendi também que não queria mais passar com aquelas pessoas.” 

No ano passado, após muito desgaste e discussão em Crato (CE), Karla fechou a porta de casa para a família na noite de 24 de dezembro. Como ela, outras pessoas optaram pela distância para evitar brigas advindas da polarização política que o país atravessa.

A professora da Urca (Universidade Regional do Cariri) diz que estava cansada das reuniões repletas de piadas homofóbicas, críticas à esquerda e ideias conservadoras. 

Karla vai passar o segundo Natal longe da família depois que Bolsonaro foi eleito
Karla vai passar o segundo Natal longe da família depois que Bolsonaro foi eleito - 18.dez.2019 - Zanone Fraissat/Folhapress

Antes das eleições, ela —que já havia saído do grupo de WhatsApp da família—procurou saber como votariam seus parentes mais próximos. Diz ter concluído que “os argumentos eram ainda piores do que os votos”. 

Jair Bolsonaro (sem partido) se elegeu presidente com quase 58 milhões de votos em outubro de 2018. Foi o lance derradeiro para a fratura familiar. 

Karla, então, convidou apenas amigos e fez o que chamou de Natal da diversidade. Em paz —mas sem os parentes. Ou ainda, para ela, por isso mesmo em paz. “Não briguei com ninguém, só fechei a porta e saí”, afirma. 

Apesar de sentir em ter se afastado de tios e irmãos, ela não se arrepende. “Foi melhor assim”, diz ela, que morava na casa ao lado da mãe.

Licenciada da universidade cearense, a professora veio para São Paulo fazer o doutorado neste ano.

Sozinha na maior cidade do Brasil e ainda abalada por ver pessoas próximas manifestarem ideias que ela diz serem contrárias ao que mais preza, ela conta que acabou com depressão. 

O problema não atingiu só ela. O mesmo aconteceu com a filha de 17 anos. O filho mais velho, de 19, sofreu com crises de ansiedade.

A decisão de Karla, em 2018, teve três consequências: 
1) Sua mãe, que receberia a família toda em casa, cancelou a festa natalina daquele ano.
2) Em 2019, Karla decidiu antecipar a noite de Natal viajando com a mãe para Gramado.
3) Nesta noite de 24 de dezembro, Karla e os dois filhos vão passar a festa no bar, longe de qualquer provocação.

Pagando R$50 por pessoa, a ceia terá direito a opções veganas, além das tradicionais comidas natalinas. Bebidas como a cerveja Lula Livre (600 ml, R$13), e a caipirinha Cadê o Queiroz (600 ml, R$13), não estão incluídas nesse valor.

Esse tipo de evento é uma opção para quem, como a psicopedagoga Renata Cavalli, 38, pediu uma pizza e passou a noite de Natal sozinha em 2018. Ela, que fará uma festa em casa neste ano, escolheu se afastar de parte dos parentes. 

“Não cortei relações com meu pai, mas a esposa dele e uns tios são claramente fascistas, no meu ponto de vista”, diz. 

As generalizações, as certezas inabaláveis e as informações colhidas em fontes questionáveis completam o quadro que ela enxerga e, a seu ver, torna o diálogo impossível em casas como a de sua família —cena repetida país afora em tempos de paixões e ódios políticos inabaláveis. 

“Todo mundo tem a plena certeza, por exemplo, de que o Lula é ladrão, que o PT destruiu o Brasil, mas estão reproduzindo falas prontas e não se aprofundam em nada.”  

Tempos assim, em que tantas certezas levam a separações, são marcados por uma tendência a classificarmos as pessoas de acordo com nossas crenças, diz o psiquiatra e psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise Ricardo Biz. Essa “época de extremos” induz a comportamentos, por vezes, irrefletidos. 

“Há um nivelamento por baixo, e passamos a explicar as coisas com base no bem e no mal. Isso em todos os níveis: social, político e psicológico”, afirma. “É como se estivéssemos ainda na Idade Média, só há certo e errado.”

Apesar disso, claro, há quem consiga se equilibrar, engolir provocações, convicções e cruzar o abismo político instalado nas festas de família. 

Dono do Destro Bar, em Belo Horizonte, Daniel Laender Reis, 40, afirma que passará o Natal em harmonia com o primo Gabriel Laender, com quem não tem lá muita afinidade política, segundo ele. “Meu primo é de esquerda, e radical, e é um grande amigo. A gente se entende muito bem”, afirma.

No bar, repleto de quadros de ícones liberais (neo e tradicionais), como os do presidente dos EUA Ronald Reagan (1911-2004) e da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1925-2013), ao lado da imagem do escritor Olavo de Carvalho, Daniel diz já ter recebido pessoas de esquerda. Nunca uma briga foi registrada ali, diz. 

Longe do Brasil, mas nem por isso afastada das polêmicas, a gerente de atendimento ao cliente da Dell Gabriela Lobianco, 37, receberá a família do marido em Cork, na Irlanda, onde mora. 

“As rixas políticas no Brasil, seja em família ou com terceiros não me ofendem. Tenho minha posição política e quando percebo que a pessoa não irá concordar comigo concordo em discordar sempre”, diz. 

Para quem não consegue chegar a um consenso ou ao equilíbrio de Gabriela, uma das consequências pode ser os distúrbios emocionais. 

Segundo o psicanalista Ricardo Biz, a rigidez mental é um fator de risco claro para sintomas como o medo do diferente e o isolamento.  

Não se chega ao ponto de romper com a família, claro, de uma hora para outra. Para Augusto (nome fictício, pois ele teme retaliações no emprego), foram anos em que a discórdia, por ora inconciliável, foi sendo gestada. Ele trabalha em uma prefeitura paulista governada por um partido de direita. 

Abertamente de esquerda, o problema dele não está ali, mas em casa. Seus irmãos, primos e parentes mais próximos defendem o governo Bolsonaro, assim como defenderam o impeachment da ex-presidente Dilma Rouseff (PT) com unhas e dentes. 

Segundo ele, as farpas familiares começaram durante o primeiro governo da petista. “Pelo menos desde 2010, a situação foi ficando complicada”, diz.

Finalmente, chegou ao ponto de, neste ano, escolher passar com a família de sua mulher, em outro estado, bem longe de São Paulo e da rinha entre irmãos.

Quase uma década de brigas e dissabores é tempo suficiente para começar a ensaiar uma reaproximação? Talvez não. “Ainda tem um bom tempo para as coisas se acalmarem”, diz 

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