O mundo de Lua sempre foi também de luta. Com a franja pintada de rosa e os argumentos de um adulto politizado, a menina de 12 anos “e cabeça de 20”, segundo a mãe, parece transitar constantemente entre a leveza da fantasia e o peso da realidade.
“Não sou ativista, sou realista”, ela mesma costuma dizer a quem pergunta. E são muitos os que perguntam. Já foram incontáveis entrevistas desde que ela criou uma biblioteca gratuita no seu Morro dos Tabajaras, encravado em Copacabana, na zona sul carioca.
Montou o cantinho dentro de um prédio público da associação de moradores e o batizou de Mundo da Lua —abreviação de seu nome completo, Raissa Luara de Oliveira—, hoje com 18 mil livros e sem mais estantes para guardar as doações que chegam toda semana.
A ideia nasceu de um espanto durante a Bienal do Livro, em setembro passado. “Mamãe, quero esse livro”, ela ouviu uma criança perguntar. “Filha, eu não tenho dinheiro para comprar”, respondeu a adulta ao lado. O livro custava R$ 3.
Dois dias depois, fingindo ser a mãe, Lua pediu o espaço à vice-presidente da associação. Ela só contou a peripécia para Fátima Regina, 60, quando um vídeo seu pedindo doações de livros já viralizava na internet. A mãe recebeu 200 ligações naquele dia.
O Mundo da Lua já inspirou crianças e adolescentes em outras comunidades cariocas e em outros estados, que querem criar as próprias bibliotecas com os 500 livros que a menina vai mandar para cada um.
Lua, que lê um exemplar por semana, agora está escrevendo o seu próprio, sobre como colocou seu xodó de pé. “Às vezes fico com vontade de roubar a biblioteca e colocar lá em casa”, imagina ela.
O projeto rendeu à garota uma bolsa integral numa escola particular, que ela agora concilia com a própria biblioteca e as aulas de teatro, música, dança e circo. Muitas vezes o meio de transporte até essas atividades é sua perna-de-pau.
Para a mãe, o item circense é também um símbolo do que a filha já superou. Se de um lado Lua nutre a admiração pela cantora pop Iza, o amor por doces e o fascínio por tudo que é arte, do outro convive com a complexidade da família, o racismo e as exclusões da favela.
“Isso eu te peço para escrever de um jeito assim… Porque a história é meio feia”, solicita a menina depois de pedir à mãe que saia da sala. Ela, então, conta a história de sua mãe biológica com clareza.
A jovem engravidou de Lua e foi impedida de entrar em casa “de barriga”. Tentou abortar, porém foi convencida a não fazê-lo por Fátima, mãe do pai de Lua, que disse que criaria a bebê. “Mas não guardo rancor”, conclui a garota.
A mistura entre negros, indígenas e alemães na família rendeu a ela o cabelo crespo naturalmente loiro. Com ele vieram o racismo e o bullying. “É como se ela ficasse fora da tribo, os negros a acham muito branca, e os brancos veem o cabelo sarará”, diz Fátima.
“Quando eu tinha uns cinco anos, começaram a roubar meu lanche e me bater na escola. Ouvi da diretora que ou eu prendia o cabelo ou seria convidada a sair do colégio.”
Lua não entendia direito naquela época, mas hoje já tem o que muitos adultos ainda buscam: consciência de si e do mundo que a contorna.
“As pessoas lá embaixo não sabem o que acontece aqui em cima”, diz, lembrando que parte do morro está sem água há um mês. Uma das “coisas da prefeitura” que a deixaram perplexa nesta semana, com as chuvas, foi o comentário do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) sugerindo que as pessoas gostam de morar em áreas de risco “para gastar menos tubo e colocar cocô e xixi” —ele diz ter sido mal interpretado.
“Sr prefeito tenho 12 anos me chamo Lua Oliveira e convido o senhor a vim conhecer minha comunidade Tabajaras/Cabritos, fica em Copacabana. Onde eu com a ajuda da população montei uma biblioteca comunitária. Eu com 12 anos fiz mais pela minha comunidade do que o sr em todo o seu mandato [sic]”, ela comentou numa reportagem do jornal Extra.
A provocação fez a prefeitura mandar um carro até o Tabajaras na quarta (4) para buscá-la e colocá-la frente a frente com Crivella. Ele prometeu reformar o edifício onde fica a biblioteca, com infiltrações e banheiros interditados, a partir da próxima semana.
Enquanto isso não acontece, Lua ainda parece desiludida com a política institucional. “Quero ser atriz e veterinária”, diz. “Nunca vi um político fazer uma coisa boa pela nossa cidade”, dispara.
“Eu gosto de ter um propósito”, filosofa. E qual é ele? “Não é tipo mudar o mundo, porque o mundo não vai ser mudado por uma pessoa só, mas estou fazendo a minha parte pela minha comunidade.”
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