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'Não sou ativista, sou realista', diz menina que criou biblioteca

O acervo tem 18 mil livros; doações chegam toda semana

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Rio de Janeiro

O mundo de Lua sempre foi também de luta. Com a franja pintada de rosa e os argumentos de um adulto politizado, a menina de 12 anos “e cabeça de 20”, segundo a mãe, parece transitar constantemente entre a leveza da fantasia e o peso da realidade.

“Não sou ativista, sou realista”, ela mesma costuma dizer a quem pergunta. E são muitos os que perguntam. Já foram incontáveis entrevistas desde que ela criou uma biblioteca gratuita no seu Morro dos Tabajaras, encravado em Copacabana, na zona sul carioca.

Montou o cantinho dentro de um prédio público da associação de moradores e o batizou de Mundo da Lua —abreviação de seu nome completo, Raissa Luara de Oliveira—, hoje com 18 mil livros e sem mais estantes para guardar as doações que chegam toda semana.

A ideia nasceu de um espanto durante a Bienal do Livro, em setembro passado. “Mamãe, quero esse livro”, ela ouviu uma criança perguntar. “Filha, eu não tenho dinheiro para comprar”, respondeu a adulta ao lado. O livro custava R$ 3.

Lua Oliveira, 12, na biblioteca pública com 18 mil livros que criou na associação de moradores do Morro dos Tabajaras, comunidade em Copacabana, na zona sul do Rio 
Lua Oliveira, 12, na biblioteca pública com 18 mil livros que criou na associação de moradores do Morro dos Tabajaras, comunidade em Copacabana, na zona sul do Rio  - Ricardo Borges - 04.mar.2020/Folhapress

Dois dias depois, fingindo ser a mãe, Lua pediu o espaço à vice-presidente da associação. Ela só contou a peripécia para Fátima Regina, 60, quando um vídeo seu pedindo doações de livros já viralizava na internet. A mãe recebeu 200 ligações naquele dia.

O Mundo da Lua já inspirou crianças e adolescentes em outras comunidades cariocas e em outros estados, que querem criar as próprias bibliotecas com os 500 livros que a menina vai mandar para cada um.

Lua, que lê um exemplar por semana, agora está escrevendo o seu próprio, sobre como colocou seu xodó de pé. “Às vezes fico com vontade de roubar a biblioteca e colocar lá em casa”, imagina ela.

O projeto rendeu à garota uma bolsa integral numa escola particular, que ela agora concilia com a própria biblioteca e as aulas de teatro, música, dança e circo. Muitas vezes o meio de transporte até essas atividades é sua perna-de-pau.

Para a mãe, o item circense é também um símbolo do que a filha já superou. Se de um lado Lua nutre a admiração pela cantora pop Iza, o amor por doces e o fascínio por tudo que é arte, do outro convive com a complexidade da família, o racismo e as exclusões da favela.

“Isso eu te peço para escrever de um jeito assim… Porque a história é meio feia”, solicita a menina depois de pedir à mãe que saia da sala. Ela, então, conta a história de sua mãe biológica com clareza.

A jovem engravidou de Lua e foi impedida de entrar em casa “de barriga”. Tentou abortar, porém foi convencida a não fazê-lo por Fátima, mãe do pai de Lua, que disse que criaria a bebê. “Mas não guardo rancor”, conclui a garota.

A mistura entre negros, indígenas e alemães na família rendeu a ela o cabelo crespo naturalmente loiro. Com ele vieram o racismo e o bullying. “É como se ela ficasse fora da tribo, os negros a acham muito branca, e os brancos veem o cabelo sarará”, diz Fátima.

“Quando eu tinha uns cinco anos, começaram a roubar meu lanche e me bater na escola. Ouvi da diretora que ou eu prendia o cabelo ou seria convidada a sair do colégio.”

Lua não entendia direito naquela época, mas hoje já tem o que muitos adultos ainda buscam: consciência de si e do mundo que a contorna.

“As pessoas lá embaixo não sabem o que acontece aqui em cima”, diz, lembrando que parte do morro está sem água há um mês. Uma das “coisas da prefeitura” que a deixaram perplexa nesta semana, com as chuvas, foi o comentário do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) sugerindo que as pessoas gostam de morar em áreas de risco “para gastar menos tubo e colocar cocô e xixi” —ele diz ter sido mal interpretado.

“Sr prefeito tenho 12 anos me chamo Lua Oliveira e convido o senhor a vim conhecer minha comunidade Tabajaras/Cabritos, fica em Copacabana. Onde eu com a ajuda da população montei uma biblioteca comunitária. Eu com 12 anos fiz mais pela minha comunidade do que o sr em todo o seu mandato [sic]”, ela comentou numa reportagem do jornal Extra.

A provocação fez a prefeitura mandar um carro até o Tabajaras na quarta (4) para buscá-la e colocá-la frente a frente com Crivella. Ele prometeu reformar o edifício onde fica a biblioteca, com infiltrações e banheiros interditados, a partir da próxima semana.

Enquanto isso não acontece, Lua ainda parece desiludida com a política institucional. “Quero ser atriz e veterinária”, diz. “Nunca vi um político fazer uma coisa boa pela nossa cidade”, dispara.

“Eu gosto de ter um propósito”, filosofa. E qual é ele? “Não é tipo mudar o mundo, porque o mundo não vai ser mudado por uma pessoa só, mas estou fazendo a minha parte pela minha comunidade.”

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