Depoimento: 'Pode rodar o mundo que não vê coisa igual', diz ipê-roxo paulista

Temporada começa mais cedo neste ano após estiagem

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São Paulo

Já faz umas duas semanas, mais ou menos, que eu e os outros começamos o trampo. Todo ano é assim. A temperatura cai, o clima vai ficando seco, vocês se enchem de casaco até a orelha e a rua parece mais triste. Mas, então, a gente meio que se enche desse cinza todo e explode. Não tem erro. E ainda assim, vocês sempre se surpreendem...vai entender.

Primeiro vêm os que florescem em roxo, depois amarelo, aí vem o branco e, então, cor-de-rosa.

Eu sei, você tá olhando pra mim e tá vendo tudo rosa. Firmeza, só que isso é roxo, tá ligado? O lance é que ipê-roxo, como eu, tem a flor cor-de-rosa. O ipê-rosa também, só que é um rosa um pouco mais claro.
E na boa, não tem essa de não pode. Eu floresço na cor que eu quiser. Tá, não é na cor que eu quiser, não dá pra florescer em azul, por exemplo, mas mesmo que desse... Nem me vem com esse papo de ministra, cara.

Mas, serião. Sou roxo. Pode perguntar pra um botânico. Tem aquele cara, Ricardo Cardim. Isso, da USP. Ele te explica.

Pra gente, botânico é tipo o médico de vocês. Eu falo “pra gente”, mas a gente é árvore mesmo, tá ligado? Devia ter uma palavra que a gente pudesse usar para ser diferente de vocês. Sei lá, mano... “pra árvore”? Meio estranho. Desencana.

Nesse ano, pra gente —já falei que não vou usar “pra árvore”, chato, hein?—, então, nesse ano, pra gente, começou mais cedo. Não, nada a ver com mudança climática e tal. O Ricardo acha que é porque depois daquela chuvarada de fevereiro —isso, que inundou garagem de prédio e tudo mais— deu uma estiada boa. Aí, a gente começou.

Aliás, não sei se você se ligou, mas quando chove daquele jeito e cai um monte de árvore, você nunca ouve falar que caiu ipê. Não, de boa, tô só te explicando...Nada disso, não sou melhor nem pior. Só que sou nativo, entendeu? Sei como funciona o clima aqui. E, além disso, se liga na madeira. Bate aí. Rá! Tanquinho, mano!

Acho que vocês se surpreendem quando a gente floresce porque meio que ignoram minha espécie, e todas as outras, o ano inteiro. Você nem sabia que eu sou roxo. Por quê? Porque não se liga em árvore, tá nem aí. Mas quando chega essa época não tem como.

Se sair na rua agora e olhar pra cima como é que tá? Tá tudo florido. E se olhar pra baixo? Também! A gente faz até tapete de flores para vocês passarem...de carro...

Pode rodar o mundo que não vê coisa igual. Pelo menos foi o que me disseram umas amigas exóticas que vivem aqui. Não que eu fale a língua delas. Tem umas que são da China, da Índia, e de não sei mais onde. Eu sou daqui mesmo. Tenho família pelo interior todo, e até no cerrado. Sim, é rolê até lá.

Mas aí, se liga, nesse ano, começou a fazer frio, o ar foi ficando seco, a gente pintou a cidade de cor-de-rosa e o que aconteceu? Nada. Vocês sumiram. Vacilo.

Quer dizer, sumir, sumir, de verdade, vocês não sumiram, não. Tava assim de motoboy e ônibus cheio. Vários entregadores de comida. O cara que varre aqui essa quadra disse que eram os que não puderam ficar em casa e tiveram que trampar. Que nem a gente.

Teve um vírus que atingiu a sua espécie, né? Eu ouvi mesmo.

O que? Como assim? Taí ainda?

Mano do céu... as ruas já estão cheias de novo. Busão rodando com o povo em pé, fila de carro pra descer a Cardeal Arco Verde. Diz que até shopping já abriu. Tão querendo meter o lôco e ver no que dá? Sai daí, mano.

Aliás, deixa eu te perguntar um lance? Você entrega comida, trabalha no hospital, é essencial, pode trabalhar de casa? O que você tá fazendo parado na calçada? Pra ver o quê? Eu?

Não, parou. Cê tá maluco. Vou avisar os caras todos. Parou com a flor. Ninguém floresce mais até passar esse vírus. Vai, vaza! Quer ver planta, compra uma samambaia e leva pra casa. Ano que vem tô aqui.

*Depoimento como imaginado pelo repórter

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