Descrição de chapéu Coronavírus

Para evitar contaminação, povo guarani adapta vida tradicional e cria isolamento comunitário

Nos dois territórios indígenas na cidade de SP, escolas viraram centros de isolamento

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São Paulo

Quando o cotidiano de uma comunidade é vivido de maneira coletiva, como o do povo indígena guarani em São Paulo, manter o distanciamento social para evitar a disseminação do coronavírus se torna mais complexo do que apenas seguir a recomendação de ficar em casa.

"O isolamento social é só 'não sair de casa' porque os não indígenas já vivem em caixinhas. A vida é cheia de caixinhas, então é só se trancar nos apartamentos que está tudo certo", diz Tiago Karai, professor e um dos líderes da terra indígena (TI) Tenondé Porã, no extremo sul da capital.

"Mas, para a gente, foi muito complicado fazer esse isolamento individual porque somos uma grande família e a gente compartilha tudo."

Interior da casa de reza da aldeia Pyau, na terra indígena Jaraguá, deixou de reunir grandes grupos; o espaço de encontro diário é importante para o fortalecimento espiritual do povo Guarani
Interior da casa de reza da aldeia Pyau, na terra indígena Jaraguá, que deixou de receber grandes grupos durante a pandemia; o espaço de encontro diário é importante para o fortalecimento espiritual do povo Guarani - Marlene Bergamo/Folhapress

Nos dois territórios guarani localizados no município, evitar o contágio dentro das aldeias significou mudar as atividades diárias feitas coletivamente —e que são base de sua vida tradicional.

As casas de reza, chamadas de opy, por exemplo, deixaram de ser frequentadas diariamente por grupos numerosos.

"Além de ser um local sagrado, na opy a gente cuida do corpo, da nossa mente e do nosso espírito. É o lugar onde a gente desabafa, encontra para conversar e rezar juntos. Quando a gente vai para a casa de reza [em número] limitado, isso nos prejudica, nos tira um pouco da força espiritual mesmo", conta Thiago Henrique Karai Djekupe, 26, ativista guarani e um dos que vive na TI Jaraguá, na zona noroeste de São Paulo.

"Passamos a observar as pessoas mais depressivas, tristes, de cabeça baixa. É bom as pessoas ficarem dentro de casa, mas, para nós da aldeia, é algo muito sombrio."

Entre março e abril, o território com cerca de 600 habitantes e 532 hectares viu um crescimento acelerado de habitantes com sintomas da Covid-19, lembra Thiago. Para conter o contágio, a primeira estratégia adotada foi evitar sair das aldeias e não permitir a entrada de novas pessoas.

Com cerca de cem casos confirmados, um dos grande desafios no Jaraguá é a própria disposição das moradias. "As casas aqui na aldeia são muito pequenas e muito próximas. Além disso, elas geralmente são só de um cômodo e acomodam mais de quatro pessoas, sendo que muitas não têm janela, não têm quarto", diz.

O Centro de Educação e Cultura Indígena (Ceci) Jaraguá foi então transformado em um espaço de isolamento para suspeitas e casos de Covid-19 para contribuir com a dificuldade de isolamento nas aldeias.

As cozinhas, que são comunitárias, só são frequentadas com regras para manter o distanciamento entre as pessoas e para a higienização correta dos utensílios.

Até agora, a Secretaria de Saúde do município registrou 364 casos de Covid-19 entre os guarani.

Enquanto no Jaraguá não houve nenhum óbito, na Tenondé Porã, que tem cerca de 16 mil hectares e 1.200 habitantes, foram três mortes por coronavírus. A primeira foi uma criança de um ano com complicações de saúde, no fim de março. Os outros dois, no começo do mês, tinham 61 e 80 anos.

"A gente traduziu para as pessoas [da comunidade] o que seria esse isolamento, mas o nosso cotidiano, como a gente vive, é muito diferente do jurua kuery, o não indígena", diz Tiago Karai.

Visitar as famílias de outras territórios ou de outras aldeias da mesma terra, tomar chimarrão, fumar o petyngua (o cachimbo) juntos pela manhã e compartilhar os sonhos para buscar seus significados é importante para o mundo guarani, explica Tiago.

Assim como no Jaraguá, as escolas da Tenondé também foram transformadas em espaços de isolamento.

Nas duas terras, um dos trabalhos mais importante também foi conversar com os mais velhos da aldeia para que eles tomassem cuidado diante da pandemia.

"Ouvir que os mais velhos eram grupo de risco traz uma tristeza muito grande porque eles, para nós, são um museu vivo", explica a liderança do Jaraguá. "São nossas bibliotecas, não sei como o jurua chamaria, mas é uma fonte de sabedoria e que não é escrita, não está no papel. É uma sabedoria viva."

Lucimar Constantino, 42, enfermeira e gestora da Unidade Básica de Saúde Vera Poty, localizada na Tenondé, conta que hoje a maior preocupação da equipe é com as aldeias que ficam mais distantes dos centros de atendimento de saúde da terra indígena.

"Estamos fazendo estratégias para estar presente todos os dias lá", diz. Uma das aldeias fica a 25 km de distância da UBS, e o acesso é por uma estrada de difícil circulação.

Ela, que trabalha há quinze anos no território, conta que depois das primeiras mudanças nos hábitos comunitários e da adoção de máscaras, os problemas que surgiram foram em torno de como se manter financeiramente nesse novo cenário.

Na Tenondé, parte da remuneração vem do turismo indígena de base comunitária. Assim como no Jaraguá, a venda de artesanatos feita no centro da cidade também é outra fonte de renda importante para a comunidade.

Ambos os territórios conseguiram, no entanto, arrecadar doações para manterem o isolamento social durante esse período e evitar que não indígenas entrem na terra.

"É de longa data que os guarani desenvolveram estratégias para controlar as tantas coisas negativas que vem do mundo não indígena", conta o antropólogo Lucas Keese sobre esse fechamento para a cidade.

"Os guarani mbya ainda hoje se caracterizam por serem bem reservados e manterem distância dos não indígenas, mesmo tendo seu território sobreposto aos estados mais populosos do país. Podemos dizer que essa foi uma estratégia marcante de resistência histórica deles."

Ele explica que, assim como para os outros povos indígenas no Brasil, "a vida boa de se viver é coletiva, comunitária".

Para Thiago Henrique, um dos grandes impactos de ter que se manter isolado do mundo não indígena é não poder se articular politicamente contra ameaças do governo.

"A gente não sabe quando a pandemia vai acabar, não sabemos quando nossa vida vai voltar ao normal, não sabemos o que vamos fazer quando o presidente começa a ameaçar nossos direitos", diz, lembrando a declaração do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de "passar a boiada", durante a reunião ministerial do dia 22 de abril. "Como a gente se organizava quando o governo faz esse tipo de coisa? A gente reza muito com todo mundo da comunidade. Não pudemos fazer isso dessa vez."​

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