Vítimas de cerveja contaminada em MG enfrentam despesas e sequelas

Backer fez depósito judicial de R$ 200 mil que deve ser usado para custear despesas

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Belo Horizonte

Marco Aurélio Cotta, 65, que costumava levar e buscar a neta na escola todos os dias, a viu apenas uma vez nos mais de 160 dias em que está no hospital. Josias Moreira de Matos, 53, teve a carreira de 29 anos como taxista interrompida, depois de perder parte da visão e dos movimentos. Luciano Guilherme de Barros, 57, pisou fora do hospital pela primeira vez em seis meses no último dia 3 de junho.

Os três consumiram a cerveja Belorizontina, da Backer, e viram suas vidas viradas de cabeça para baixo há cerca de seis meses. Assim como a maior parte das pessoas diagnosticadas com a síndrome nefroneural, consequência da intoxicação pelo dietilenoglicol encontrado na bebida, tiveram enjoos, problemas nos rins e sequelas físicas.

Enquanto o caso segue na Justiça, as contas de despesas médicas se acumulam e as famílias reclamam apoio da empresa para gastos emergenciais. Nas contas da Backer, foram encontrados pouco mais de R$ 12 mil —a empresa alegou que está sem faturar desde janeiro, quando recolheu bebidas do mercado e parou atividades.

Marco Aurélio Cotta, 65, que via a neta todos os dias, está internado há 160 dias
Marco Aurélio Cotta, 65, que via a neta todos os dias, está internado há 160 dias - Arquivo pessoal

Onze pessoas foram indiciadas pela Polícia Civil de Minas Gerais pela contaminação —sete delas por homicídio culposo, além de lesão corporal e contaminação de produto alimentício. A investigação aponta imperícia por parte de técnicos e gestores, apesar de reconhecer que houve um acidente. Além de outros pontos de vazamento da substância na fábrica, o problema principal ocorreu com uma solda, que levou o dietilenoglicol para dentro de um tanque.

A substância, usada para resfriar, segundo a polícia, é tóxica e o uso iria contra os manuais dos equipamentos cervejeiros. Caso a empresa tivesse usado álcool de cana-de-açúcar ou de cereais, diz o delegado Flávio Grossi, o vazamento teria provocado no máximo alteração no sabor ou no teor alcoólico da cerveja. Até o momento foram identificadas 29 vítimas —8 morreram. Outros 27 casos estão em investigação.

Os números foram atualizados na segunda (15) pela polícia, que diz que eles podem ser alterados devido às perícias médico-legais ainda sendo realizadas.

Taxista há quase 30 anos, Josias Moreira de Matos, 53, parou de trabalhar devido às sequelas
Taxista há quase 30 anos, Josias Moreira de Matos, 53, parou de trabalhar devido às sequelas - Arquivo pessoal

A Backer criticou a conclusão do inquérito, alegando que ela não condiz com as provas levantadas durante a investigação. A defesa da empresa afirma que ela comprava monoetilenoglicol e não dietileno, que a mistura teria sido feita pelo fornecedor sem seu conhecimento, e que não pode ser responsabilizada pelo defeito no tanque, que levou ao vazamento interno.

“A Backer concorreu para esses dois atos? Não. A Backer não teve culpa. Nós entendemos que a conclusão do inquérito não corresponde às provas que foram carreadas durante a investigação”, afirmou o advogado Marco Aurélio Souza.

No dia 2 de maio, Marco Aurélio Cotta completou 65 anos dentro do hospital, com uma visita controlada de 40 minutos dos dois filhos e da mulher. Internado desde o dia 30 de dezembro, nesse tempo ele teve de ser reanimado cinco vezes, teve oito infecções e paralisia facial e ficou com parte da visão comprometida. Hoje, tem uma traqueostomia e faz hemodiálise.

Por cerca de um mês, ele ficou em um quarto, mas uma nova infecção o levou de volta ao CTI. Com as restrições impostas pela pandemia do novo coronavírus, as idas da família ao hospital diminuíram —inclusive de Maria Aparecida, 63, com quem é casado há 38 anos. Há poucas semanas, ela voltou a ir todos os dias, mesmo com riscos.

“Eles têm uma relação emocional de dependência muito grande. Ele não consegue desenvolver se ela não estiver presente”, conta a filha Ângela Minghini Cotta, 36. “A gente não sabe como o papai vai ficar, como vai ser o futuro dele, se ele vai conseguir sair dessa, então, a gente vai fazer o que tiver que ser feito para ele ter qualidade de vida, para passar por tudo isso.”

Parte das despesas de Marco Aurélio é custeada pelo plano de saúde, mas outras, como a obra para adaptar a casa para recebê-lo em uma cadeira de rodas e exames fora da cobertura, são bancadas pela família.

O taxista Josias Moreira de Matos, 53, depende do SUS (Sistema Único de Saúde) para avançar no tratamento, enquanto lida com as sequelas em casa e com as contas. Ele ingeriu a cerveja só uma vez, no dia 5 de janeiro, e ficou internado por alguns dias.

“A Backer não só abalou a estrutura da saúde mas também o lado financeiro, porque ele era o provedor de casa, deixou de trabalhar e as contas começaram a acumular”, diz a filha Dayane Hulda Bernardes, 21. “Ele fica angustiado, não poder dirigir e depender dos outros.”

Pagamentos da prestação da casa e IPTU estão atrasados e ele corre risco de perder a placa do táxi. Dayane, que era motorista particular, parou de trabalhar para atender o pai. Recentemente, conseguiram dois auxílios emergenciais do governo federal pela pandemia.

Josias, que trabalhava de segunda a segunda, está com problemas na visão e audição e teve o movimento do lado direito do corpo afetado. A consulta no oftalmologista, solicitada em janeiro, foi marcada só na semana passada. Outras, como as de fisioterapia e fonoaudiologia, ainda não têm previsão.

A Backer fez um termo para custear despesas de uma das vítimas, o professor de psicologia da UFMG Cristiano Mauro Assis, 47. O valor mensal de custeio é confidencial, mas ele é o único hoje recebendo a ajuda.

A empresa afirma que pediu à Justiça alienação de bens para seguir pagando o que foi acordado e que passou R$ 200 mil para depósito judicial para arcar com custos de saúde das vítimas. O valor veio de um empréstimo como adiantamento da venda do estoque testado e certificado pelo Ministério da Agricultura, que a empresa aguarda autorização para vender.

O último balanço fiscal da empresa é de 2018, quando o faturamento foi de R$ 980 mil. Em 2019, a Backer passou por uma expansão com instalação de 12 novos tanques, segundo a PCMG.

Luciano Guilherme, 57, também espera pelo auxílio emergencial. Morador do bairro Buritis, onde as primeiras vítimas foram identificadas, ele deixou o hospital onde foi internado em 6 de dezembro no último dia 3, para evitar risco de contágio pelo novo coronavírus.

“Dois dias depois [de ser internado], eu apaguei e não lembro mais. Fiquei 65 dias no CTI, acordei no CTI, fiquei mais de 30 dias apagado, entubado, com traqueostomia e tudo”, conta ele. “O veneno me fez perder a mobilidade, inclusive dos nervos da face, fiquei completamente imobilizado. Olho direito eu não enxergava nada e no esquerdo enxergava alguns vultos.”

Luciano retirou 70 cm do intestino por causa de uma perfuração, tem problemas de audição e perdeu a capacidade renal e 35 kg. Apesar do alívio de estar em casa, ele sabe que o caminho é longo. Vivendo em um apartamento no quarto andar de um prédio sem elevador, para sair desce os degraus com ajuda e sentando em uma cadeira depois de cada lance de escadas.

A saída do hospital teve comemoração da equipe de saúde, com balões, promessa de um churrasco e a música “É preciso saber viver”. No dia 28 de maio, quando completou 57 anos, no hospital, ele diz que não dormiu pensando que começava ali o primeiro ano de uma nova vida.

“Estou feliz demais da conta estando em casa, com a minha família. Eu ficava imaginando se um dia eu iria voltar e isso me ajudava”, diz ele. “Falar que a gente espera justiça é bobagem, é claro que esperamos. Seja pagando a gente ou que paguem pelo que fizeram.”

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