Juíza associa homem negro a grupo criminoso 'em razão da sua raça'

Corregedoria do Tribunal abriu procedimento para apurar conduta da magistrada, que nega preconceito

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Curitiba

A raça foi uma das características usadas para associar um homem a um grupo criminoso em Curitiba (PR). Nas palavras da juíza Inês Marchalek Zarpelon, o réu Natan Vieira da Paz, um homem negro de 48 anos, “seguramente” integrava a organização, “em razão de sua raça”.

A frase foi repetida em três partes da sentença de 115 páginas, da 1ª Vara Criminal de Curitiba. A decisão é do dia 19 de junho, mas ganhou repercussão com a revolta da advogada do réu, Thayze Pozzobon, que compartilhou a sentença nas redes sociais.

Juíza Inês Zarpelon, que citou raça para condenar réu,  em cerimônia no Tribunal de Justiça do Paraná em 2016
Juíza Inês Zarpelon, que citou raça para condenar réu, em cerimônia no Tribunal de Justiça do Paraná em 2016 - Divulgação/TJPR

“Associar a questão racial à participação em organização criminosa revela não apenas o olhar parcial de quem, pela escolha da carreira, tem por dever a imparcialidade, mas também o racismo ainda latente na sociedade brasileira”, escreveu a advogada.

Após o impacto do caso, a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ/PR) informou em nota à Folha que instaurou procedimento administrativo para apurar os fatos.

Natan, cujo apelido é “Neguinho”, como detalha a própria sentença, foi condenado a 14 anos e 2 meses de prisão, em regime fechado, além de multa, por roubos e furtos praticados em organização criminosa. Ele pode recorrer da condenação em liberdade.

Ao fixar a pena, seguindo as diversas etapas previstas em lei, que levam em conta as circunstâncias do crime e as características do acusado, a juíza apontou que Natan é réu primário e que “nada se sabe sobre sua conduta social”, mas que a sua atuação merecia ser valorada negativamente.

"Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça", escreveu a magistrada. Na sequência, ela afirmou que, no grupo criminoso que integrava, ele e os demais réus "causavam o desassossego e a desesperança da população", fator que deveria ser considerado para valorar negativamente as condutas.

​A característica usada para condenar Natan, no entanto, não foi usada pela juíza para qualificar nenhum dos outros seis réus julgados na mesma sentença —outros dois foram citados como participantes dos crimes, mas, como não foram encontrados para citação, foram separados do processo. Todos fariam parte de um mesmo grupo suspeito da prática de diversos furtos e roubos no centro de Curitiba.

Ao cobrar providências sobre o caso, a advogada do réu afirmou que a juíza ofendeu a Constituição ao não considerar todos os acusados iguais perante a lei.

“Organização criminosa nada tem a ver com raça, pressupor que pertencer a certa etnia te levaria à associação ao crime demonstra que a magistrada não considera todos iguais, ofendendo a Constituição Federal. Um julgamento que parte dessa ótica está maculado. Fere não apenas meu cliente, como toda a sociedade brasileira”, escreveu na postagem.

Juíza escreveu que réu era integrante de grupo criminoso por causa da sua raça, em Curitiba; imagem mostra a sentença, ressaltando a frase racista
Juíza escreveu que réu era integrante de grupo criminoso por causa da sua raça, em Curitiba Foto: Divulgação - Divulgação

Via Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar), a juíza divulgou uma nota em que pede desculpas pelo ocorrido, mas afirma que a frase foi “retirada de um contexto maior” e que a cor da pele do réu não foi levada em consideração para condená-lo.

“Em nenhum momento a cor foi utilizada –e nem poderia— como fator para concluir, como base da fundamentação da sentença, que o acusado pertence a uma organização criminosa. A avaliação é sempre feita com base em provas”, afirmou a juíza.

“Reafirmo que a cor da pele de um ser humano jamais serviu ou servirá de argumento ou fundamento para a tomada de decisões judiciais. O racismo é prática intolerável em qualquer civilização e não condiz com os valores que defendo”, concluiu na nota.

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) abriu uma investigação para apurar crime de racismo cometido pela juíza. O corregedor nacional de Justiça, o ministro Humberto Martins, concedeu 30 dias para que a corregedoria do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) elucide os fatos.

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