'Exu corona' e terreiro queimado escancaram intolerância religiosa na pandemia

Líderes de religiões afrobrasileiras apontam aumento de ataques e subnotificações

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rio de Janeiro

Do pastor que culpa "exu corona" por seus males à vizinha que esparrama óleo ungido na oferenda, nem na pandemia a intolerância religiosa deu trégua. Pelo contrário, líderes de crenças afrobrasileiras dizem que o isolamento social acirrou o clima de ódio. Só está mais difícil quantificá-lo, já que a quarentena dificultou o monitoramento dos ataques.

"A pandemia tem aumentado a ansiedade das pessoas, e os conflitos religiosos têm subido junto. Briga de vizinhos, ou algumas casas que continuam sendo agredidas. E cresce também na internet", diz o babalaô Ivanir dos Santos, da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa.

"Mas o quantitativo não dá pra perceber porque as pessoas que nos procuram têm mostrado dificuldade de fazer boletim de ocorrência online", afirma. "Claro que os idosos têm mais dificuldade." Justamente o maior grupo de risco na crise da Covid-19, mais temeroso de enfrentar uma delegacia possivelmente cheia.

Leo Ty Logun Ede, o pai Leo, com três décadas no candomblé, decidiu encarar após seu terreiro em Jacarepaguá (zona oeste do Rio) sofrer um atentado no dia 5 de outubro. Foi à 32ª Delegacia de Polícia denunciar uma vizinha que, segundo ele, jogou óleo ungido sobre uma oferta aos orixás que ele deixou em frente à casa de culto.

"Cantei, louvei e despachei o padê, como a gente chama, que era farinha com fubá, mel, azeite doce e dendê", conta. "Este pessoal da igreja estava lá na esquina. Berravam 'casa do Satanás'. Podiam gritar o que quisessem, era na rua."

Uma mulher, então, tascou óleo no despacho, e outra se apresentou como perita policial e disse que poderia dar voz de prisão a ele, afirma Leo. "Se é, não deveria nem deixar fazer isso, que é intolerância religiosa. Você é estudada", o pai de santo reproduz o que devolveu à suposta autoridade.

Segundo a Polícia Civil, a mulher que se identificou como perita não o é nem faz parte dos quadros da corporação.

Mãe Jaciara, ialorixá do Ilê Axé Abassá de Ogum, ao lado do busto em homenagem à mãe Gilda, alvo de vandalismo praticado por fanático religioso, no Parque do Abaeté, em Itapuã - Raul Spinassé - 29out.2020/Folhapress

Outra queixa constante é o preconceito com terreiros em cidades onde decretos municipais incluíram serviços religiosos entre as atividades essenciais. "A gente nem recebia mais público, éramos só mães e filhas de santo, todas de máscara e distantes. Mesmo assim, a polícia bateu aqui duas vezes. Pergunta se foram lá [na Assembleia de Deus vizinha]", ironiza uma ialorixá que prefere ocultar o nome.

Festas maiores é melhor evitar mesmo, afirma Antonio Basílio Filho, diretor jurídico do Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afrobrasileiras. "Nossas entidades cumprimentam corpo a corpo. Pretos-velhos são idosos, falam no pé do ouvido. Se tivermos alguém assintomático, vai infectar a maioria do pessoal."

É exu, "nosso guardião, a entidade que nos protege na terra", que desencadeia as reações mais raivosas, sobretudo de evangélicos. Boa parte do segmento estigmatiza elementos da fé afrobrasileira, percepção incentivada por títulos como "Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?", de Edir Macedo.

Um dissidente da igreja do bispo, a Universal do Reino de Deus, foi o responsável por soltar o "exu corona" na TV. Seria o responsável pelo atraso no aluguel de templos de sua igreja, a Mundial do Poder de Deus, disse o apóstolo Valdemiro Santiago —o mesmo que vendia sementes de feijão, até R$ 1.000 cada, alegando falsamente que o cultivo delas traria a cura da Covid-19.

Um caso simbólico ocorreu na Bahia. No 15 de julho, um sujeito foi até a praça de Salvador onde fica um busto de mãe Gilda e o vandalizou. "Mesmo em tempo de afastamento social, temos vivido muitos ataques. Jogou pedra, jogou vidros, disse que em nome de Deus tinha que arrebentar [a estátua]", diz mãe Jaciara dos Santos, filha da mãe de santo morta em 2000.

Gildásia dos Santos e Santos, a mãe Gilda de Ogum, morreu de coração partido. Infartou aos 65 anos. A saúde andava frágil desde o ano anterior, quando o jornal da Igreja Universal publicou sua foto sob o título: "Macumbeiros charlatões lesam a Bolsa e a vida dos clientes –o mercado da enganação cresce no Brasil, mas o Procon está de olho”.

Evangélicos de outra igreja chegaram a invadir o terreiro para tentar exorcizar a mãe de santo. Em 2007, a data de sua morte, 21 de janeiro, virou marco: o Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa.

A empresa que se recusou a limpar a vitrine de uma loja de artigos de umbanda e candomblé, a VR Style African. A vizinha que subiu na escada com um pedaço de bambu e quebrou peças sagradas de um terreiro. Ou o pai de santo que visitou a casa, de recesso desde a pandemia, e a encontrou em chamas.

"A baixa frequência nos templos acabou se convertendo em oportunidade para os ataques, como o incêndio ocorrido, no mês de setembro, num terreiro de umbanda em Nova Iguaçu, na baixada fluminense", diz Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola.

"Só em 2019, cerca de 200 terreiros foram fechados por conta das ações de violência. As medidas restritivas de prevenção não podem ser usadas como brecha para a livre atuação dos intolerantes." Um outro tipo de vírus, não menos perigoso.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.