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No Brasil de Beto, como nos EUA de Floyd, racismo começa a ser entendido como problema de todos

Beto Freitas foi morto em frente a um Carrefour de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul

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São Paulo

Impossível não associar as imagens da ação de seguranças do supermercado Carrefour de Passo d’Areia, em Porto Alegre (RS), que resultaram na morte de João Alberto Silveira Freitas, 40, àquelas que registraram o assassinato de George Floyd, em maio deste ano, nos EUA.

Floyd, um homem negro de 46 anos, morreu sufocado pelo joelho do policial Derek Chauvin, que espremeu seu pescoço, mantendo as mãos no bolso, enquanto ouviu por 20 vezes: “Eu não consigo respirar”.

O registro do espancamento, dos gritos de dor e do sangue de Beto Freitas —ou Nego Freitas, como era conhecido— no piso laranja do estacionamento da loja mostra uma ação igualmente brutal.

Em ambos os casos, a vítima é um homem negro, e a maneira como os acontecimentos se desenrolaram até suas mortes aponta para uma naturalização da violência contra corpos negros.

Cálculos feitos pela Folha a partir de dados coletados pelo jornal The Washington Post para o projeto Fatal Force, que trata de letalidade policial, apontam que entre 2015 e 2016 as polícias dos EUA mataram uma pessoa negra a cada 35 horas. No Brasil, no mesmo período, policiais mataram uma pessoa negra a cada duas horas.

Considerados os percentuais de negros em cada população (56% dos brasileiros se declaram pretos ou pardos e 13% dos norte-americanos são negros), a taxa de mortos pelas polícias no Brasil é cinco vezes maior que nos EUA.

Nos EUA, a ação criminosa foi perpetrada por um policial em serviço. Em Porto Alegre, as agressões foram praticadas por seguranças privados.

Só que no Brasil essa história tem uma pegadinha.

A indústria da segurança patrimonial no Brasil é também movimentada por policiais, que fazem bicos como vigilantes ou são sócios de parte das mais de 4.600 empresas autorizadas pela Polícia Federal a funcionar no país.

Um levantamento feito pela Agência Pública em 2017 deu ideia do peso da presença policial neste setor ao apontar que quase 1 em cada 4 empresas que atuavam em São Paulo tinha ou já havia tido policiais em seus quadros societários —alguns eram aposentados; outros, policiais da ativa.

A presença de policiais militares da ativa em sociedades com fins lucrativos é proibida pelo Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de São Paulo. E a própria Constituição Federal proíbe funcionários públicos, como policiais, de acumularem cargos remunerados, como a chefia de companhias de segurança privada.

Algumas delas são empresas de formação de seguranças, outras executam o serviço na ponta e podem contratar policiais em seus dias de folga, o que também é ilegal. A fiscalização do setor fica a cargo da Polícia Federal, que tem falhado nessa tarefa.

A trama entre segurança pública e privada tanto pode especializar vigilantes com técnicas testadas e consagradas como pode impregnar esse tipo de atuação particular com aquilo que existe de pior nas nossas corporações policiais: despreparo, truculência e reprodução do racismo estrutural presente na sociedade brasileira.

O grupo responsável pela segurança terceirizada da loja do Carrefour onde Beto Freitas foi morto tem três policiais no quadro societário. Um dos agressores de Beto é um policial militar temporário, cujo vínculo com a polícia já é mais precário, bem como seu treinamento.

Ao contrário do episódio americano, quando os policiais não manifestaram preocupação com as filmagens da ação criminosa, no espancamento de Beto Freitas no Carrefour uma segurança tentou impedir o registro das agressões, ameaçando o funcionário que apontava o celular para a cena.

Os protestos antirracistas marcados em algumas capitais do país indicam que, assim como muitos americanos diante do caso George Floyd, muitos brasileiros não estão mais dispostos a se calar sobre as violências que ceifam vidas negras no país. Assim como nos EUA, houve atos pacíficos e houve quebra-quebra.

A presença de pessoas brancas nos atos, que marcaram com revolta este Dia da Consciência Negra, também está em sintonia com o que ocorreu nos EUA, quando o apoio desse grupo foi visível e importante para ampliar o debate sobre a questão racial por lá.

Se os protestos desta sexta-feira são o início de uma onda, só o tempo dirá. Mas parece cada vez mais difícil fechar os olhos para o fato de que, tanto nos EUA quanto aqui, o racismo caminha para ser finalmente compreendido como um problema de todos.

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