Descrição de chapéu São Paulo 2030

A casa é a tipologia mais presente na cidade e é discriminatória por definição, diz arquiteta

Para a mexicana Tatiana Bilbao, moradia popular precisa levar em conta diferentes perfis familiares e individuais e valorizar o convívio coletivo

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São Paulo

É comum que, ao associar os termos “sustentabilidade”, “arquitetura” e “futuro”, venham à mente soluções tecnológicas para reduzir o consumo de energia e a pegada de carbono. O conceito de desenvolvimento sustentável, no entanto, abarca bem mais do que o aspecto ambiental, como deixam claros os 17 objetivos da Agenda 2030.

“Sempre pensei que um mundo sustentável não é esse que transforma tudo com ‘energias limpas’; elas também consomem muitos recursos”, diz à Folha a arquiteta mexicana Tatiana Bilbao. “O que precisamos é transformar em profundidade como vivemos.”

A profundidade das transformações propostas pelo estúdio que leva seu nome é variada. Vai de casas unifamiliares e condomínios de luxo ao Jardim Botânico de Culiacán, capital do estado mexicano de Sinaloa. Mas entre os temas de predileção da arquiteta está a habitação social.

Vencedora de vários prêmios —entre os quais, em 2019, o Marcus Prize, que reconhece trajetórias em ascensão, e, em 2014, o Prêmio Global de Arquitetura Sustentável, dado pela Fundação Locus e pela Cité de l’Architecture de Paris—, ela deveria ter vindo ao Rio em 2020, para o Congresso Mundial da UIA (União Internacional de Arquitetos).

Devido à pandemia, o evento mundial, que pela primeira vez, desde 1948, é organizado no Brasil, ocorre totalmente online.

Bilbao fará, em 18 de julho, a fala “A Casa como Ato Social”. Segundo a arquiteta, repensar o conceito de lar para que seja um “templo do cuidado” é dever de todos; só assim, diz, ele poderá ser uma “plataforma para que cada um crie sua própria existência”, afirma.

Ela conversou com a Folha por telefone de New Haven, Connecticut, nos EUA, onde se encontra para seu curso anual como professora visitante na universidade Yale.

O tema da moradia popular é sempre lembrado quando se fala de seu trabalho. Como nasce esse interesse na sua trajetória?

Meu primeiro trabalho foi na Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação da Cidade do México. Ao entrar, meu interesse era pelo tema urbano, pelo espaço público. Ao sair, era pela moradia. Entendi que ela é o ponto de partida da cidade.

Minha geração estava sempre pensando no próximo museu, no novo aeroporto. Eu sentia um vazio ao notar que não se falava de habitação.

Deixei a secretaria porque concluí que seria mais difícil atuar em benefício do habitante no âmbito público do que no privado. No público, não se serve só ao habitante, mas também a interesses contrários aos dele, políticos e econômicos, de outra índole.

Decidi que deveria primeiro entender não só a casa, mas o processo de produção de moradia e do espaço urbano, sua dimensão política e financeira. Dirigimos muita energia a entender as possibilidades econômicas, em vez de captar a necessidade do habitante e buscar as possibilidades econômicas para supri-la.

A sra. defende que o caminho para sanar a demanda habitacional não passa por enormes conjuntos padronizados feitos por grandes agentes, mas por delegar a construção aos interessados, a partir de protótipos. Pode explicar seu ponto de vista?

Estou convencida, em primeiro lugar, de que a arquitetura é importante demais para ficar só na mão dos arquitetos; e, depois, de que a definição de como alguém deve viver só pode ser estruturada pelo próprio indivíduo.

Uma das grandes problemáticas do século 20 é o entendimento de que a padronização pode estabelecer uma base para a equidade e que, para isso, temos de estabelecer metas que digam “isso é o mínimo que alguém necessita para viver bem”.

O problema é que, ao definir isso, definimos também a forma como todos têm de viver. O que definimos como moradia minimamente digna, digamos 40 m², com cozinha, um banheiro, dois quartos e uma sala, acaba se tornando na realidade o máximo que se fará.

Decidimos que todos têm de viver na forma heteropatriarcal monogâmica, sem considerar os que vivem fora dessas condições.

Mas como conciliar a visão individual e a produção em massa de moradia?

É preciso entender a produção social do habitat, como um coletivo pode desenvolver seu próprio esquema de vida com o apoio de todos —e é diferente “com o apoio de todos” de “pela determinação dos outros”. Arquitetos, financiadores, banqueiros deveriam se somar para determinar os projetos, mas não temos todas as ideias e soluções; cada um tem uma definição muito distinta de como viver.

Eu imagino que um esquema sustentável seria um conjunto habitacional no qual os vizinhos possam se organizar para que um possa, um dia, ir buscar todas as crianças na escola; que outro, no outro dia, cozinhe para todos, enquanto os demais trabalham.

Fizemos algumas intervenções em duas unidades habitacionais para tornar espaços antes tomados por estacionamentos ou depósitos espaços comuns de convivência. Também fizemos um modelo, em um laboratório de habitação social em uma comunidade suburbana, Apan.

O que projetamos foi uma ideia de moradia que se conforma a partir de módulos, e a pessoa pode escolher quais deseja. Pode tudo girar em torno de uma cozinha, ou então pode-se articular um conjunto de casas em torno de um elemento compartilhado, como um pátio.

Estou convencida, em primeiro lugar, de que a arquitetura é importante demais para ficar só na mão dos arquitetos; e, depois, de que a definição de como alguém deve viver só pode ser estruturada pelo próprio indivíduo.

Tatiana Bilbao

arquiteta

Essa ideia de espaços fragmentados norteia vários de seus projetos; no Jardim Botânico de Culiacán, há uma série de prédios que são conectados pelo percurso, ou na casa de veraneio em Chapala, que é formada por blocos individuais ligadas por áreas comuns.

Sim, estudei por muito tempo como entender a fragmentação dos espaços e a relação entre eles, em diferentes escalas, não só físicas mas também sociais.

Falando em fragmentação social, um problema comum ao México e ao Brasil é que a moradia popular normalmente se faz na periferia, obrigando a deslocamentos de horas, o que se tornou ainda mais cruel na pandemia. Que soluções a arquitetura pode dar a essa questão?

O maior problema da moradia social é ela ser determinada pelo capital, pelo valor do solo. Por isso a necessidade tem sido sempre coberta a partir de solos mais baratos nas periferias. Não há como gerar moradia social sem intervenção do Estado para subsidiar o solo ou para proteger seu valor por meio de cooperativas ou fideicomissos fundiários.

Talvez haja soluções mais rápidas e viáveis, como a reutilização de edifícios em zonas centrais das cidades. Como vê essa questão?

A pandemia abre uma possibilidade incrível, pois esses lugares vão se esvaziar, mas aí deveria intervir o Estado, porque ninguém vai querer dar esses espaços de presente; preferem que fiquem vazios a isso.

Podem-se adotar medidas como o imposto progressivo para imóveis sem destinação social. Esse mecanismo existe em São Paulo, embora seja pouco utilizado.

No México não temos isso. Mas é dessa forma de intervenções do Estado de que falo.

Sua fala no congresso da UIA terá a ver com igualdade de gênero, um dos objetivos da Agenda 2030. Como a arquitetura pode contribuir para essa questão?

A casa é a tipologia mais presente na cidade. E é um espaço discriminatório por definição. Se ele não mudar, a cidade nunca será para a mulher. O modelo de casa vigente hoje, que se repete aos milhões e é determinado por lei em grande parte do mundo, reforça a estrutura que discrimina sistematicamente a mulher. Enquanto não houver uma transformação no esquema reprodutivo e de cuidado, não vamos alcançar a igualdade. As cidades têm de colocar no centro de sua concepção o trabalho doméstico e reprodutivo.


Raio-x

Tatiana Bilbao, 48
Nascida na Cidade do México, formou-se arquiteta na Universidade Iberoamericana. Tem trabalhos em seu país, na França e nos EUA, entre os quais vários projetos de moradia social

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