Ele dizia que eu devia o sacrifício à minha mãe, diz gaúcha estuprada

Alessandra Andrade, 45, conta sobre abusos sofridos desde a infância dentro de casa

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São Paulo

Uma luxação congênita de quadril fez com que Alessandra Andrade, 45, andasse apenas aos seis anos de idade. A doença, hoje nominada displasia do desenvolvimento do quadril, compromete a ligação entre o fêmur e o quadril e a obrigou a se submeter a oito cirurgias. O problema físico, somado à vulnerabilidade social, foi o pano de fundo do abuso sexual a que foi submetida dentro de casa, aos nove anos, e que a marcou para sempre.

A servidora pública gaúcha Alessandra Andrade, 45, vítima de abuso sexual e psicológico na infância
A servidora pública gaúcha Alessandra Andrade, 45, vítima de abuso sexual e psicológico na infância - Daniel Marenco - 11.mai.21/Folhapress

Nasci e cresci em Montenegro, área metropolitana de Porto Alegre (RS). Sou filha de mãe solteira. Quando eu tinha nove anos, ela conheceu uma pessoa, que logo foi morar com a gente. Minha mãe trabalhava de dia e ele de noite, como garçom.

Os abusos começaram um ou dois meses depois, com a história de me pegar no colo. Eu era miudinha, meu desenvolvimento foi muito lento porque nasci com deficiência nas pernas e só comecei a caminhar aos seis anos.

Ele tinha essa coisa de se esfregar em mim, entrar no banheiro enquanto eu tomava banho para se masturbar. Também teve penetração. Não me lembro exatamente como foi, mas não me esqueço da dor insuportável e do sangramento.

Ele dizia que eu nasci “estragada”, que devia esse sacrifício a ele e à minha mãe, que trabalhava para me sustentar. Eu chorava, tentava fugir e gritar, mas normalmente ele amarrava alguma coisa na minha boca.

Eu tinha muito medo porque ele ameaçava matar a minha mãe se eu contasse. Ela levantava às 6h para ir trabalhar; eu só entrava às 7h no colégio, mas levantava, me arrumava e me escondia debaixo da cama. Ouvia os passos dele me procurando.

Os abusos só pararam com 11 anos, porque fui estudar em uma escola técnica onde havia a opção de fazer matérias extras, e eu acabava passando o dia inteiro na escola.

Acho impossível uma mãe não notar os sinais, eu não conseguia estudar, perdia peso. Uma vez tentei contar para ela e escutei que devia “deixar pra lá” e também que eu tinha ciúmes dos dois. Minha mãe nunca me protegeu e só foi acreditar em mim quando estava perto de morrer.

Ele ficou sabendo que eu falei com minha mãe e me levou para um córrego, onde me violentou e chegou a introduzir plantas espinhosas na minha vagina.

Minha mãe teve uma filha com ele. Na noite em que ela nasceu, ele tomou um porre e ficou dizendo: “Agora que a sua mãe vai estar de resguardo, você tem que tomar conta de mim como mulher”. Eu me tranquei no quarto, fugi pela janela e pedi socorro na casa de uma tia. Por pressão da família, minha mãe pediu o divórcio um tempo depois.

A última vez que o encontrei foi em uma festa de aniversário. Até passei mal, estava grávida, e fui embora. Minha irmã também nunca aceitou. Já teve a cara de pau de dizer: “Se você passou por isso foi porque quis”. Imagina, eu tinha nove anos e nem conseguia caminhar direito. Como eu ia me proteger?

Faz uns cinco anos que ele morreu de cirrose. Minha mãe virou evangélica e queria que eu fosse ao hospital perdoá-lo, para a passagem dele não ser em sofrimento.

Ninguém sabe o quanto essas coisas te fazem perder totalmente o amor próprio. Os abusos que sofri minaram minha autoestima.

Acabei crescendo com a ideia de que só servia para isso, com necessidade de querer agradar as pessoas de quem gostava, o que me sujeitou a outros tipos de abuso.

Aos 14, fui ao aniversário de 15 anos da minha melhor amiga e, lá pelas tantas, me vi com uma pessoa com quem nunca tinha falado antes, só para não “ficar feio com minhas amigas”. Quando percebi o que ia acontecer, tentei ir embora e fui ridicularizada —afinal o cara, que tinha uns 23 anos, era o mais gatinho, blá-blá-blá. Lembro de ter sido estuprada e deixada depois da festa, como se fosse um saco de lixo.

Aos 17, fui de novo estuprada por um namorado.

Assim segui por bom tempo, achando que eu era lixo mesmo e merecia. Foquei nos estudos, segundo a minha avó, o único caminho para a libertação das mulheres.

O abuso te quebra e te desnorteia. Eu não tinha muita noção do que era estupro. Só recentemente, depois de um relacionamento permeado de abuso e estudando mais, descobri que todo sexo sem consentimento é estupro.

Tive dois casamentos e dois filhos em cada. O primeiro casamento durou cinco anos, meu filho mais velho hoje tem 19 anos. O segundo não tinha violência, mas também não deu certo, e saí com a autoestima baixa. Só agora, com 45 anos, sinto que estou tomando posse da minha vida e das minhas decisões.

Depoimento a Ana Beatriz Gonçalves.

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