Relato de patinadora sobre abusos sexuais do técnico provoca mudança legal na França

Após denúncias de Sarah Abitbol, rede de investigação foi estruturada para apurar denúncias no esporte

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Belo Horizonte

“A” para “apalpada”, “T” para “tocada”, “C” para “chupada” e “S” para “sexo”. Aos 15, quando foi violentada pela primeira vez, Sarah Abitbol começou a anotar em um caderninho as modalidades de abusos que sofria nas mãos do sr. L —de “lixo”.

Entre 1990 e 1992, ela foi estuprada dentro de carros, vestiários, alojamentos e escritórios. O agressor era seu técnico, Gilles Beyer, que se aproveitou da posição de autoridade e da confiança cega dos pais da atleta, além de se beneficiar da conivência dos colegas e de autoridades do esporte.

Muito conhecida na França, a campeã só teve coragem de contar aos pais sobre o abuso em 2004, durante uma crise de depressão. Levaria mais 16 anos para tornar a história pública, no livro “Un si long silence” (“Um Silêncio tão Longo”, sem edição brasileira). Tinha então 44 anos.

Sarah Abitbol e Stéphane Bernardis durante apresentação em 2006, na inauguração de um rinque público em Paris (França) - Stephane de Sakutin/AFP

Lançado em janeiro de 2020, o relato estremeceu as instituições da patinação artística francesa, tornou-se estopim de uma série de revelações e reabriu o debate sobre a prescrição de crimes sexuais cometidos contra menores.

No livro, Sarah conta que, ao saberem de tudo em 2004, seus pais foram confrontar o técnico. Sua resposta: “Não sei o que aconteceu comigo, peço desculpas a vocês”.

Ao procurar o ministro dos Esportes à época, Jean-François Lamour, para que afastasse Beyer, que continuava a treinar patinadoras menores de idade, ele confirmou que havia um inquérito aberto pela pasta para investigar o técnico, mas acrescentou que não podia fazer nada se ela não prestasse queixa.

“Se você precisar de ajuda para organizar seus espetáculos, pode contar comigo. Sobre o resto, melhor deixar por isso mesmo”, disse Lamour.

Ela relata ter procurado ainda o presidente e o diretor artístico de seu clube, mas nenhum tomou medidas.
As tentativas de Sarah para que Beyer fosse punido esbarraram na exigência para que prestasse queixa, o que na época ela não queria fazer para não tornar sua experiência pública nem reviver a experiência traumática.

Em 2018, o Senado e a Assembleia Nacional franceses aprovaram aumentar de 20 para 30 anos o prazo de prescrição de crimes contra menores. A patinadora defende que sejam imprescritíveis.

O desfecho da história não é de impunidade total. O clube demitiu o técnico poucos dias após o lançamento do livro. A ministra dos Esportes, Roxana Maracineanu, convocou o presidente da Federação Francesa dos Esportes de Gelo, Didier Gailhaguet, para prestar esclarecimentos e exigiu sua demissão. Ele renunciou a contragosto no início de fevereiro de 2020.

A ministra Maracineanu ordenou a abertura de uma investigação administrativa envolvendo 21 treinadores da Federação Francesa de Esportes de Gelo suspeitos de assédio e agressões sexuais. Em setembro de 2020, o Ministério Público abriu um inquérito judicial baseado no relatório.

No documento, a pasta afirma que o volume de casos relatados “é indicativo de práticas e comportamentos reiterados, que passaram por gerações de treinadores nas principais disciplinas da federação, [...] e é incomparável em nível internacional”.

Também foi criado um canal de denúncias para atletas. Em fevereiro, com um ano de funcionamento, a plataforma já havia registrado 387 queixas envolvendo 421 suspeitos, segundo a AFP. Desses, 191 foram suspensos, afastados de suas funções de forma definitiva ou proibidos de trabalhar e ainda podem ser processados e condenados à prisão.

Do total de relatos, 83% são de violência contra mulheres, 82% envolvem menores de idade (63% com menos de 15 anos) e 89% citam crimes sexuais. Cerca de 96% dos agressores suspeitos são homens, e 72% são educadores esportivos, como técnicos e preparadores físicos.

Das 155 federações de esportes francesas, 48 são citadas nas denúncias.


abuso no esporte

Coreia do Sul, 2019 
Shim Suk-hee, ouro em patinação de velocidade no gelo, e cinco atletas denunciam o técnico Cho Jae-beom por abuso sexual e moral. Ele foi condenado a 12 anos de prisão

Brasil, 2018 
Mais de 40 atletas acusam o ex-técnico da seleção de ginástica artística Fernando de Carvalho Lopes de abuso moral, físico e sexual; ele responde a processo por 4 estupros de vulnerável

Reino Unido, 2016 
Ex-jogador de futebol Andy Woodward acusa o técnico Barry Bennell de tê-lo molestado dos 8 aos 14 anos. Onda de denúncias vindas a seguir envolveu 240 suspeitos e 692 vítimas

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